-->

sábado, 6 de outubro de 2012

Comentários Salmo 101

Continuação do post anterior
Senhor, ouve a minha oração e chegue a Ti o meu clamor.
Esse pedido com o qual se inicia o Salmo sugere a idéia de alguém que reza, porém percebendo uma aparente indiferença de Deus em relação à sua prece. Ele fala com o Senhor e não recebe nenhuma resposta. Julgando-se não atendido, insiste com “clamor”. Clamar é falar em alta voz, bradar. Na medida e no sentido que esse último verbo comporte um sentimento de respeito, é do brado que se trata. “O meu clamor chegue a Ti”: clama-se para quem está longe, do qual nos separa uma grande distância. Então, as palavras do Salmista equivalem a estas: “Chegue a Ti minha voz longínqua, Tu que te puseste tão afastado de mim, ou me colocaste tão distante, ouve-me, por favor!”
Isso supõe a ideia de um pecador profundamente convicto do mal cometido por ele, e a quem Deus, entretanto, quer provar. Não cedendo desde logo ao primeiro sinal de sua penitência, Deus concede-lhe a graça para que se arrependa ainda mais. Compreende-se. Pois Ele não quer se contentar, em contrapartida de um grande pecado, com um qualquer pequeno pedido de perdão. Deus escava nessa alma os sulcos da dor, para que deles nasçam as flores da contrição.
Quantas e quantas vezes o mesmo acontece conosco! Pedimos algo a Deus e — ainda que o façamos pela gloriosa intercessão de Maria Santíssima, cuja mediação é infalível e sempre vitoriosa — nos parece não haver reação da parte d’Ele. Nosso Senhor assim age, para que clamemos mais alto e o nosso gemido, expressão de nossa dor e humilhação, faça sair das entranhas de nossas almas os brados absolutamente lancinantes, diante dos quais Deus se inclina e, afinal, perdoa.
“Um olhar teu me resgata e redime!”
Não apartes de mim o teu rosto; em qualquer dia que me achar atribulado, inclina para mim o teu ouvido.
Esse versículo é uma reiteração do primeiro. Porém, para evitar algo de monótono inerente a toda repetição e conservar o mérito da perseverança, o versículo utiliza outras palavras e metáforas, dizendo mais ou menos a mesma coisa que o primeiro. Consideremos sua beleza:
Não apartes de mim o teu rosto...
Reaparece a noção contida no versículo precedente, de quem julga suas preces desprezadas por Deus. Então persiste na súplica: “Tu não me olhas e voltaste de lado o teu rosto. Eu te chamo e não me vês, por- que não queres, desvias teus olhos enojados da minha alma pecadora. A Ti eu suplico: não afastes mais de mim o teu rosto, que me é como o sol. Um olhar teu me cura, resgata e redime!
“Mas, Senhor, para que Tu me fites, deves voltar teus olhos para mim. Eu me inclino envergonhado diante da limpidez e pureza de teu olhar, o qual não ouso encarar e há de pousar sobre as feridas repelentes dos pecados que me cobrem. Mas, sei que teu olhar cura o mal que ele rejeita, e assim te peço: olhai-me, curai-me!
Esse Salmo me parece profundamente compreensível e tocante, trazendo-me à lembrança a letra da música Ojos claros, do compositor espanholGuerrero, que muito me agrada e termina com esta súplica: “E já que morreis por mim, olhai-me pelo menos...”
Tais palavras evocam a ideia de Cristo no alto da Cruz e um pecador de joelhos junto a ela, implorando perdão, batendo no peito e dizendo: “Sei que minhas culpas me tornam uma das causas de vossa morte. E como, conforme diz o Salmista, estou metido num limo, numa substância escorregadia, quase diria pantanosa, onde não há solidez1, rogo-Vos: olhai-me ao menos. Se me concederdes um olhar, Vós me tereis dado tudo!”
Tenho a impressão de que, ao chegar a hora de minha morte, pedirei a Jesus, pelos rogos de Maria, esse olhar salvador: “olhai-me ao menos”, porque quero passar para a outra vida com Ele olhando para mim. E aproveito a ocasião para sugerir essa piedosa prática a quem se encontrar no derradeiro instante que um dia chega para todos: lembre-se de pedir a Nossa Senhora que dirija a Jesus, em seu favor, este pedido: “Olhai-o, ao menos”. Porque se a Virgem Santíssima assim interceder por nós, a porta do Céu se nos abrirá.
O desejo de ser atendido prontamente
...em qualquer dia que me achar atribulado, inclina para mim o teu ouvido.
Mais uma vez, a mesma metáfora. Como Nosso Senhor está com a face voltada para outra direção, suas vistas não olham para o pecador que reza, e seus ouvidos como que permanecem fechados à voz suplicante.
Pode acontecer ao longo dos dias de qualquer um de nós — mais extensos ou menos, conforme aprouver aos desígnios divinos — a desgraça de que, em certo momento, Deus nos olhe com olhar por assim dizer empalidecido, distante e desinteressado, a fim de arrancar de nossa alma um gemido de penitência. Se tal acontecer, não fiquemos angustiados, mas roguemos a Nossa Senhora que interceda por nós. Ela, então, dirá a Jesus: “Meu Filho, voltai vossos ouvidos para ele e ouvi suas palavras. Eu vos peço.”
Em qualquer diz que Te invocar, ouve-me prontamente.
O homem aflito espera que Deus não demore em atendê-lo, pois a aflição é uma dor da qual ele procura escapar. Então o pecador exprime essas belas palavras: “Em qualquer dia que te invocar, ouve-me prontamente”.
Ou seja: “Senhor, ouvi-me e atendei-me com rapidez!”
Continua no próximo post

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

SALMO 101 - Não apartes de mim o teu rosto

Salmo 101

Senhor, ouve a minha oração e chegue a Ti o meu clamor.
Não apartes de mim o teu rosto; em qualquer dia que me achar atribulado, inclina para mim o teu ouvido. Em qualquer dia que Te invocar, ouve-me prontamente.
Porque os meus dias dissiparam-se como fumo, e os meus ossos se secaram como gravetos.
Fui ferido como o feno, e o meu coração secou-se, porque até me esqueci de comer o meu pão. À força de soltar gemidos, fiquei somente com a pele pegada aos ossos.
Tornei-me semelhante ao pelicano no deserto; tornei-me como a coruja no seu albergue. Velei, e tornei-me como o pássaro solitário no telhado.
Todo o dia me improperavam os meus inimigos, e os que me louvavam conjuravam-se contra mim.
Porque comia a cinza como pão, e misturava a minha bebida com as minhas lágrimas. À vista da tua ira e indignação, porque depois de me teres elevado, me arrojaste.
Os meus dias passaram como a sombra, e eu sequei-me como o feno.
Mas Tu, Senhor, permaneces para sempre, e a memória do teu nome estende-se de geração em geração.
Tu, levantando-Te, terás piedade de Sião, porque é tempo de teres piedade e a hora já chegou.
Porque as suas próprias ruínas são amadas pelos teus servos, e eles olham com ternura aquela terra.
E as nações temerão o Teu nome, Senhor, e todos os reis da Terra respeitarão a tua glória.
Porque o Senhor edificou Sião, e será visto na sua glória. Atendeu à oração dos humildes, e não desprezou a sua prece.
Sejam escritas estas coisas para a geração futura, e o povo que há de ser criado louvará o Senhor.
Porque olhou do alto do seu santuário: o Senhor olhou do Céu sobre a Terra. Para ouvir os gemidos dos encarcerados, para libertar os filhos dos condenados à morte.
A fim de que anunciem em Sião o nome do Senhor, e o seu louvor em Jerusalém.
Quando se juntarem os povos e os reis para servirem ao Senhor.
Disse-lhe na expansão da sua força: manifesta-me o curto número dos meus dias.
Não me chames na metade dos meus dias; os teus anos estendem-se de geração em geração.
No princípio, Senhor, fundaste a Terra, e os céus são a obra das tuas mãos.
Eles perecerão, mas Tu permanecerás; todos eles envelhecerão como um vestido.
E como roupa os mudarás, e serão mudados. Tu, porém, és sempre o mesmo, e os teus anos não terão fim.
Os filhos dos teus servos habitarão, e a sua posteridade será estável para sempre.
Caráter profético do Salmo 101
Esse Salmo me parece profético em certos sentidos da palavra.
De um lado, é a história individual de um pecador que, como os referidos em Salmos anteriores, foi uma boa pessoa, que amava a Deus e por Ele era amada. Em dado momento, esse amigo do Senhor foi ingrato, revoltou-se contra o Altíssimo e pecou. O Criador não contemporizou e o puniu com sua cólera.
O homem, então, sendo flagelado pela ira divina, geme, chora e sente com amargura o mal cometido. Ajoelha-se, implora perdão. Nessa súplica ele registra que Deus o absolveu, e agradece do fundo da alma tal clemência. Não só externa sua gratidão, mas glorifica a Deus, com expressões de particular beleza e, sobretudo, verdadeiras.
Há, também, trechos referentes a Israel, ao fim do mundo e da História. Alguns versículos poderiam ser aplicados à existência do povo judaico, especialmente amado por Deus, que prometera a Abraão uma descendência mais numerosa que as estrelas do céu e as areias da praia. Entretanto, os filhos de Abraão pecaram e Deus se ergueu contra eles, castigando-os. Em vários episódios de sua história, nota-se o castigo divino se abatendo sobre o povo que andou mal, como se deu no cativeiro de Babilônia, durante o qual os judeus ficaram reduzidos à escravidão. Em seguida vem o arrependimento, e Deus os ajuda a se libertarem e voltar para Israel.
Quanto ao futuro, entende-se pelas passagens da Escritura que o povo judaico pedirá perdão e este ser-lhe-á concedido de modo tão imenso e profundo que ele se converterá. Quando isso acontecer, será de novo o Povo Eleito, o mais católico e virtuoso da Terra, tornando-se exemplo e motivo de alegria para o mundo inteiro. Até que sobrevenha a grande decadência final e, numa atmosfera de maldade generalizada, surja o Anticristo.
Os homens da fidelidade extrema
Quando isso suceder, as duas testemunhas que terão aparecido na Terra para profetizarem em nome do Senhor, serão mortas, presumivelmente pelo próprio Anticristo, e seus corpos expostos durante três dias e meio em praça pública, causando regozijo em todos os ímpios. E narra o texto sagrado que os iníquos festejarão esse crime, trocando presentes para celebrar a morte desses dois homens de Deus.
No auge de seu poder, o Anticristo talvez queira se proclamar Deus ele próprio e se fazer adorar. Em todo o caso, dirá que é Cristo, mas será uma caricatura do Redentor. O verdadeiro Filho do Altíssimo estará, na aparência, derrotado, contando apenas com um punhado de fiéis... Mas, que fiéis!
Como eu os invejo! Quando o demônio se achar triunfante no píncaro de sua glória, eles permanecerão íntegros, de uma fidelidade extrema, última, absoluta. Serão os homens incontestáveis, incontestados, que tiveram a coragem de contestar e afrontar de peito erguido tudo quanto é mau. E como me compraz a hipótese de que esses derradeiros fiéis sejam, entre outros, membros da obra por nós constituída, sobrevivendo a tudo, até os instantes finais da humanidade!
Ficarão esses autênticos católicos encerrados numa catacumba, conhecendo apenas por reflexos subterrâneos o que se passa na superfície da Terra, ou estarão presentes nos acontecimentos, em meio a mil perigos, vexações, tribulações, formando a coorte que se apresenta ao lado de Nosso Senhor, vaiado, contestado, objeto de toda a espécie de hostilidades?
O certo é que Ele — com um “E” maiúsculo tão imenso que se estende de ponta a outra do universo — não se rebaixará a combater a lesma imunda chamada Anticristo, mas o destruirá com um simples sopro de sua boca.
Com a morte do ímpio, Deus encerrará a História. Os dias da Terra se completaram, deu-se o grandioso Juízo Final, e o tempo cede lugar à eternidade.
O penitente posto à prova por Deus
Tendo em vista essas considerações, passemos a comentar os versículos do Salmo 101, levando em conta que também nós podemos nos comparar a este homem anônimo e misterioso do qual falam os textos sagrados, ditados pelo Divino Espírito Santo a um profeta. Tal pessoa havia sido boa, amiga do Criador, mas em determinado momento — oh! lástima, da parte de quantos de nós isto é verdade! — prevaricou e ofendeu a Deus. Compreendendo a situação em que se pôs, arrepende-se e dirige aos Céus a sua súplica.
Continua no próximo post.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Salmo 129 — De Profundis

No Senhor há copiosa redenção
Concluindo os comentários ao Salmo 129 — o De Profundis —ressalta-se  a beleza da alma arrependida que se sentiu objeto da amplitude do perdão divino. Transbordante de reconhecimento, o Salmista recomenda aos que trilham o caminho da vida: do início da manhã até a noite, confiai na bondade de Deus, pois o Salvador se encarnou no seio de Maria para trazer a todos a sua “copiosa redenção”.
A contrição fez nascer a alegria
Podemos imaginar cidades daquele tempo pastoril, a maior parte delas pequenas, dominadas pela vida bucólica que as circundava, nas quais os habitantes se sentiam no campo. Fez-se noite. Enquanto quase todos dormiam, um pecador arrependido de suas quedas chorava, elevando ao Céu sua prece entre lágrimas, implorando a misericórdia divina.
Quando os primeiros raios do sol tingem o horizonte  e a claridade da manhã principia a entrar pelas frestas da  porta e da janela, o pranto dele toma certa nota de alegria. Poder-se-ia dizer que, assim como a noite gerou o  dia, a contrição fez nascer a felicidade e trouxe o perdão.
“Confiai na misericórdia e sereis atendidos”
Afirma a seguir o Salmista:
Desde a vigília da manhã até a noite, espere Israel no Senhor.
Desde o despertar até a hora de dormir — em que a luta pela vida de certa forma se interrompe, os olhos se  fecham e o sono toma conta do homem — deve ele esperar em Deus, mesmo sobrevindo as coisas mais indesejáveis. Pode até cair sobre um justo a série de infortúnios desencadeados pelo demônio contra Jó, fazendo com que todo o edifício de sua grandeza e felicidade terrena desabe em cima dele. Segundo o texto sagrado (cf .  Jó 2, 9), aquele só não perdeu a esposa, que o acompanhou para criticá-lo na miséria . Leproso, Jó sentou-se num monturo de cacos, transformado na cátedra de sua dor. Ainda assim, confiou e esperou no Senhor.
Insisto na preocupação do Salmista de exprimir com pulcritude seus pensamentos, a fim de nos fazer sentir melhor o sabor da realidade.
Infelizmente, a vida moderna não favorece muito o hábito de nos determos a considerar essas belezas e com elas nos deleitarmos. Como essa é uma atitude equivocada! Se Deus realizou tantas coisas magníficas, sublimes, é seu desejo que nos aquietemos para nelas meditar e refletir.
Então o Salmista, como homem que teve a experiência da misericórdia de Deus, oferece este conselho: “Vejam como eu não merecia o perdão, mas chorei, pranteei e o obtive. Vós todos que andais pelo caminho, confiai na clemência divina desde a manhã até a noite e também a alcançareis!”
É o sentido deste Salmo.
Abundância do perdão divino
Porque no Senhor está a misericórdia, e há n’Ele copiosa redenção.
A primeira frase desse versículo — “no Senhor está a misericórdia” —, pode parecer um tanto vaga, porém encerra profundo sentido.
Na verdade, a misericórdia existente no mundo é um desdobramento e um efeito do amor do Altíssimo para com os homens. Porque Ele é misericordioso, há homens misericordiosos sobre a Terra. E as pessoas concebidas no pecado original, esquecendo-se de Deus, podem se tornar hostis umas em relação às outras. Assim, quanto mais uma sociedade tende para o ateísmo, mais se transforma num conjunto de animais selvagens.
...e há n’Ele copiosa redenção.
Isto é, o Deus Filho, encarnado, sofreu e morreu por nós, como nosso Redentor. Os méritos infinitos de seu sacrifício obtiveram do Pai Eterno o perdão de nossas culpas. Então, por sua misericórdia, Ele limpa os pecados dos homens, e o faz copiosamente, com abundância e largueza.
E Ele mesmo redimirá Israel de todas as suas iniquidades.
Meditando nessas palavras finais do Salmo, é difícil não pensar, uma vez mais, em Nosso Senhor Jesus Cristo como Salvador do mundo. Nesse sentido, revestem-se elas de  um caráter profético, pois não apenas uma nação  — no caso, Israel — nem estes ou aqueles indivíduos,  mas a humanidade inteira necessitou de redenção. E o Redentor veio, gerado pelo Espírito Santo no seio puríssimo de Maria, padeceu e se imolou por nós, abrindo novamente para os homens as portas do Céu. Pode-se dizer que Jesus verteu torrentes de sangue; ou  seja, o sangue por Ele derramado era de certo modo dor liquefeita, sofrimentos indizíveis, amargados de todas as  formas possíveis. Porém, a redenção operada por Ele é  também copiosa, jorra aos borbotões .
Clemência paradigmática: a conversão do bom ladrão
Uma das mais tocantes provas dessa misericórdia infinita deu-se no último lance da Paixão, quando Ele, parecendo derrotado, ergueu um louro de vitória: a conversão de Dimas.
Três estavam crucificados no alto do Calvário: o Santo dos Santos, o bom ladrão e o mau. Este último, facínora como era, sentindo que sua vida terminava, inconformado blasfemava contra Nosso Senhor. O outro, ao ver Jesus pregado no madeiro, deixou-se tocar pela santidade do Verbo Encarnado. Dimas compreendeu que sua vida criminosa o tornava merecedor da punição recebida.  Porém, havendo em Cristo “copiosa redenção”, sentiu a ação da graça sobre ele, infundindo-lhe a esperança de receber o perdão daquele Homem, não só extraordinário, mas superior a toda cogitação.
Quiçá, antes de morrer, o bom ladrão pensou: “Ele não é um simples ser humano, mas é o Homem-Deus”. Abraçou, então, a fé que por assim dizer emanava de Jesus crucificado, de quem é abundante a clemência, e deve ter dito ao Salvador que O reconhecia e O adorava como Deus. E se Dimas não o declarou com palavras, explicitou essa verdade no seu coração, e Nosso Senhor, sem  dúvida, conheceu os desejos e intenções dele.
Por isso Jesus lhe fez uma promessa que era a confirmação de tudo quanto ele sentia no seu íntimo: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). Ou seja, o Redentor Divino perdoou todos os pecados do bom ladrão e, pouco depois, levava a alma dele para o Céu. Cabe considerar que, enquanto não se operou a Redenção pela morte de Jesus, nenhum homem entrou  na  bem-aventurança  eterna .  Nem  mesmo  São  José,  pai adotivo de Nosso Senhor, esposo legítimo de Maria Santíssima . E a esse ladrão, ex-miserável, gloriosamente redimido, o Salvador afirmou: “Hoje estarás comigo no Paraíso”.
As almas de incontáveis justos presumivelmente esperavam há dezenas, centenas e milhares anos que o Messias morresse por elas na cruz e lhes franqueasse os umbrais do Céu. Ora, pouco antes do consummatum est, Nosso Senhor quis manifestar esse prodígio: tomou um bandido, transformou-o em santo e proclamou sua santidade ante os homens, dizendo-lhe: “Venha comigo!”
A conversão do bom ladrão se insere, pois, nos fatos que estes versículos finais do Salmo 129, tocantes e proféticos, nos fazem entrever.  

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Desde o mais profundo... Salmo 129

Desde o mais profundo clamei a Ti, Senhor; Senhor, ouve a minha voz.
Estejam atentos os teus ouvidos à voz da minha súplica.
Se examinares, Senhor, as nossas maldades, quem, Senhor, poderá subsistir?
Mas em Ti se acha a clemência, e por causa da tua lei pus em Ti, Senhor, a minha confiança.
A minha alma está confiada na sua palavra; a minha alma esperou no Senhor.
Desde a vigília da manhã até a noite, espere Israel no Senhor.
Porque no Senhor está a misericórdia, e há n’Ele copiosa redenção.
E Ele mesmo redimirá Israel de todas as suas iniquidades.


Embora pouco extenso, o Salmo 129 se reveste de imensa expressividade. Assim como procedemos em anteriores ocasiões, é interessante analisarmos versículo por versículo esse belo texto sagrado.
Infinita distância entre Deus e o pecador
Do mais profundo clamei a Ti, Senhor; Senhor, ouve a minha voz.
Tem-se a impressão de que entre o Salmista e Deus, a quem ele se dirige, há uma grande distância. De fato, é infinita, pois vai não só do Criador à criatura, mas, no caso concreto, de Deus a um pecador. Este testemunha contra si mesmo, acusa-se de suas faltas graves, e apesar de conhecer a distância que o separa do trono excelso do Altíssimo, volta-se para o Supremo Juiz. Ao longo do Salmo, apresentará a fundamentação da prerrogativa de poder apelar ao Criador.
Esperança na misericórdia divina
Estejam atentos os teus ouvidos à voz da minha súplica.
Trata-se de um modo oriental e bonito de dizer: “Senhor, fazei o que estou pedindo” . Significa uma respeitosa e filial insistência.
De certa forma, o Salmista afirma: “Vós somente realizais o que é perfeito; e se não deitardes atenção à minha súplica — por ser eu um pecador indigno de vossa consideração e até de vosso olhar — agireis conforme a justiça a qual não transgredis jamais. Sei que o mereço, mas estou ciente também de que Vós sois tão justo quanto misericordioso. E aquilo que a justiça não me concede o direito de esperar, a misericórdia me autoriza pedir. Assim, eu Vos suplico, ó Senhor, ouvi a minha voz, prestem os vossos ouvidos atenção ao que  digo!”
Muito poético, porém ao mesmo tempo lacrimoso e esperançoso. É o meio empregado pelo Salmista para que, afinal, Deus o ouça.
Se examinares, Senhor, as nossas maldades, quem, Senhor, poderá subsistir?
O pecador faz agora outro raciocínio: “Faltas, tenho as minhas, as lamento, choro, e a magnitude de meu pranto indica a imensidade de minhas culpas. Mas, Senhor, quem não as tem? Sou homem, conheço o gênero humano e todos são réus de quedas mais graves ou menos, muitos se acham na área negra do pecado mortal, e muitos naquela menos escura, mas quão fuliginosa, perigosa, do pecado venial”. E o Salmista poderia dizer: “Se prestardes atenção em nossas misérias, se fizerdes contabilidade com os homens; se a cada falta acrescentardes um castigo, exercendo vossa estrita, admirável e adorável justiça, pergunto-vos: alguém continuará existindo diante de Vós?”
De passagem, vale notar que a atitude do pecador e a sua forma de impetrar a clemência divina teriam sido outras, caso Nossa Senhora, com sua maternal mediação  junto a Deus e a seu Filho, já houvesse nascido . . .
Como quer que seja, o Salmista insiste na sua confiança: “Se Vós para tantos homens sois misericordioso e os mantendes, então também a mim, criatura humana que sou, perdoai-me. Não mereço vossa indulgência, mas a misericórdia é para os que não a merecem!”
Com essa súplica ele tem esperança de ser afinal atendido e ficar reconciliado com Deus.
Bela articulação racional
Mas em Ti se acha a clemência, e por causa da tua lei pus em Ti, Senhor, a minha confiança.
O Salmista quer dizer: “Todos os atos de clemência,  ó Deus, procedem de Vós, porque deles sois a fonte e o  modelo. Sois a clemência personificada e essa virtude se difunde como uma gloriosa mancha de azeite pelo universo inteiro. Toda a doçura que se encontra aqui, lá ou acolá vem de Vós, ó Senhor.
“Assim, concedei-me um pouco de vossa misericórdia,  da qual tanto necessito . Sou tão culpado, mas também  sou vosso filho. Senhor, não rejeiteis este filho pródigo  que vem chorar a vossos pés .”
Linda é essa articulação racional presente no Salmo 129.
A minha alma está confiada na sua palavra; a minha alma esperou no Senhor.
Ou seja, o pecador deseja afirmar: “Senhor, não se trata apenas de uma esperança de minha parte, deduzida de vossa própria natureza, mas é também uma cobrança que, genuflexo, vos dirijo. Prometestes misericórdia a todo aquele que recorresse a Vós.  ‘Todo’ não excetua ninguém, inclui os piores pecadores desde que se arrependam de suas faltas. Senhor, choro de dor pelo mal que fiz; aceitai minhas lágrimas e cumulai-me com vosso perdão.”
Maldita tendência de não dar importância ao pecado
Essa postura do Salmista é muito bonita, e concorre para quebrar em nós a tendência maldita de não dar importância ao pecado. A palavra “maldita” pode parecer demasiado forte, porém é a apropriada para se compreender quanto é nefasta essa inclinação. Quem se deixa arrastar por ela, procura racionalizar para justificar seu péssimo procedimento: “Pequei, mas Deus perdoa tudo meio  automaticamente. Logo me confessarei e — como se diz em francês, à peu près — terei uma tal ou qual contrição, e a absolvição incidirá sobre essa minha disposição de alma, atraindo para mim o perdão do Criador. De maneira que não é tão grave pecar. De vez em quando cometo um pecado mortal, porque depois peço perdão, e posso abusar da misericórdia de Deus. Ele é tão bom e santo! Por que não Lhe desferir umas bofetadas, uns pontapés, escarrar n’Ele, se é tão admirável e divino?”
Desde a vigília da manhã até a noite, espere Israel no Senhor.
Há aqui um conselho para todos os homens: Israel é a nação, o povo abençoado e amado de Deus. Então, quer o Salmista dizer: “Esses raciocínios desenvolvidos para meu próprio efeito e a propósito de minha situação, são  aplicáveis igualmente à minha raça, ao meu país, a todos  os homens e, sobretudo, à nação eleita.”
Importa assinalar que este Salmo, como os outros chamados Penitenciais, foi composto para ser lido por nós num momento de arrependimento, de compunção e tristeza. Por isso é conveniente levá-los no bolso, tirá-los e rezá-los em certas oportunidades, pois constituem verdadeiro alento para a alma.*
 Continua em próximo post

* Comentários extraídos de conferência de Plinio Correa de Oliveira

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Comentário ao Evangelho Mc 10, 14-15


"Jesus, porém, vendo isto, indignou-se, e disse-lhes: Deixai vir os meninos a mim, e não os impeçais; porque dos tais é o reino de Deus. Em verdade vos digo que qualquer que não receber o reino de Deus como menino, de maneira nenhuma entrará nele".  Marcos 10, 14-15
Na prática, o que significa converter-se e tornar-se “como menino”?
A criança não conhece a mentira, a falsidade nem a hipocrisia. Sua alma se espelha inteiramente em sua face; sua palavra traduz com fidelidade seu pensamento, com uma franqueza emocionante. Ela não tem as inseguranças da vaidade ou do respeito humano. Em uma palavra, ela e a simplicidade constituem uma sólida união.
O exemplo dado pelo próprio Deus
O Divino Infante, criador das leis da natureza, em dado momento a elas se submete como um pobre mortal. Ele deseja ensinar-nos mais esta virtude da criança que é obediente tal qual Jesus o era a seus pais, conforme encontramos em Lucas (2, 51): “e era-lhes submisso”. Para nosso exemplo, Ele conservou a obediência até o último suspiro de sua existência: “Humilhou-se a Si mesmo, fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz” (Fil 2, 8).
Que lição nos dá Jesus! A Sabedoria Eterna, um bebê em tudo dependente dos que O cercam. Essa deve ser nossa flexibilidade, resignação e disposição de alma diante de todas as circunstâncias de nossa vida, prontos a dizer “sim” a qualquer mínimo convite da graça. Eis o caminho indicado pelo Salvador, sobre as palhas da manjedoura.
Quanto nos custará, talvez, cumprir com os rigorosos deveres de uma sábia disciplina, ou de colocar-nos sob o jugo de uma autoridade, ou de nossas responsabilidades sociais e religiosas. Para agradecer a Jesus, seria bom impormos silêncio aos nossos caprichos e paixões, e imitarmos a sua obediência.
Jesus ama a pureza de coração
Se há uma nota que superlativamente nos atrai na criança, esta é, com toda certeza, a candura, que a faz ignorar a maldade. A pureza de coração, com a qual ela cria para si um universo de beleza moral que, se não trilhar as vias da santidade, ela perderá por não lutar contra a concupiscência decorrente do pecado original. Esta é a virtude que Jesus, no berço, nas praças ou no Templo, na Cruz ou na Ressurreição, mais ama (cf. Mc 10, 13-16).