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sábado, 7 de dezembro de 2013

SOLENIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO DE NOSSA SENHORA — 8 DE DEZEMBRO

COMENTÁRIOS AO EVANGELHO DA SOLENIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO DE NOSSA SENHORA — 8 DE DEZEMBRO —

O dom mais excelso de toda a ordem a criação

Em Maria, Deus quis unir a insuperável dignidade da maternidade divina ao maior dom da graça, o qual restaurou a beleza do universo criado e iniciou a história de nossa Redenção.

A VISÃO CERTA DAS COISAS É A DE DEUS

Contemplar os acontecimentos a partir de uma perspectiva divina é difícil para nós, criaturas humanas, enquanto vivemos na Terra. Por estarmos sujeitos às leis do tempo, nosso raciocínio é discursivo, diferente do modo de pensar próprio a Deus, para quem só existe o presente. Mas quando chegarmos à eternidade e nos encontrarmos face a face com Ele, tudo será muito mais simples, porque nossa inteligência se tornará deiforme.

Neste mundo, pelo contrário, conhecemos as coisas pelos sentidos e temos a tendência de considerar como realidade apenas aquilo que eles captam, pois julgamos ser este o meio mais eficaz para a analisarmos. Entretanto, tal ideia não é acertada, pois tudo está em Deus, como ensinou São Paulo no Areópago de Atenas: “é n’Ele que temos a vida, o movimento e o ser” (At 17, 28). Cada criatura esteve em Deus desde sempre, e, ao criar, Ele também o faz dentro de Si, porque nada existe fora de Deus. Enquanto nós vemos as coisas exteriormente, Deus vê tudo em Si mesmo com absoluta perfeição.

Dois modos de ver a realidade

Nada melhor do que um exemplo para nos ajudar a compreender a questão. No passado, os observatórios astronômicos eram equipados com grandes e pesadas lunetas, também chamadas de telescópios refratores. Além de serem de difícil manuseio, sua fabricação era bastante dispendiosa por causa da necessidade de lentes apropriadas. Com os avanços tecnológicos, esses aparelhos foram sendo substituídos por outros mais simples, eficientes e menos custosos, os telescópios refletores, constituídos sobretudo de espelhos em vez de lentes. Neste sistema, o observador não examina diretamente os astros com as lunetas, e sim as imagens dos corpos celestes refletidas nos espelhos. O resultado é uma análise mais acurada e precisa da abóbada celeste.

Conosco acontece algo análogo: quando nos atemos à nossa pobre visão humana, é como se estivéssemos usando uma arcaica luneta; se procurássemos interpretar os fatos em Deus, n’Ele veríamos tudo com maior clareza e exatidão. Eis a razão pela qual devemos nos empenhar em discernir as coisas em função de Deus, em vez de concluir por nós mesmos.

A História vista da perspectiva divina

Ora, claro está que nós vemos a História de um modo cronológico. Por exemplo: houve a criação dos Anjos, um deles se revoltou, arrastou consigo a terça parte dos espíritos celestes e todos estes foram lançados no inferno. Depois, Adão e Eva foram criados e introduzidos no Paraíso, onde viviam felizes até o momento em que, ludibriados pela serpente, desobedeceram a Deus, manchando o universo com o pecado. Mais tarde Nosso Senhor nos redimiu. Tal sucessão de fatos é verdadeira, mas insuficiente, e muito distante da realidade completa! Esta, qual é?

Evidentemente, o que se passa no seio da Santíssima Trindade é impenetrável por nós. Como atingir a extraordinária altura do pensamento divino? São três Pessoas idênticas e, no entanto, Se entretêm numa imensa felicidade! Por mais que queiramos, nunca poderemos formar uma noção exata de como se deu a idealização da ordem do universo com todas as maravilhas que a compõem. Nada nos impede, todavia, de cogitarmos a esse respeito. Em razão de nossa natureza temos necessidade de imagens para entender melhor e, por isso, precisamos quase “humanizar” a Deus.

Imaginemos, então, o Pai, o Filho e o Espírito Santo planejando a criação, numa conversa entabulada desde toda a eternidade. Conceber algo que não teve princípio já é complicado para nós...

Os fundamentos do universo

Deus tem em Si — usamos de propósito a palavra tem porque, como já dissemos, para Ele não há passado nem futuro — infinitos universos possíveis, Anjos e homens que não foram criados, bem como infinitas possibilidades de relacionamento dos homens entre si, dos homens com os Anjos, etc. Entretanto, Ele escolhe e cria este mundo no qual vivemos, certamente o melhor para a realização de seus desIgnios, pois sendo Deus a Perfeição não poderia preferir algo inferior ao que existe.1 Segundo nosso conceito, a formação desse universo seria semelhante ao processo de construção de um edifício: iniciamos pelos alicerces, cravados no seio da terra, e sobre eles subimos as paredes, para só então cuidarmos das partes mais nobres. Na mente de Deus, ao contrário, os fundamentos são o ponto mais alto e sublime. Por este motivo, o plano da criação parte da criatura princeps, Nosso Senhor Jesus Cristo, e em função d’Ele tudo é arquitetado, como ensina São Paulo na segunda leitura de hoje: “Em Cristo, Ele nos escolheu, antes da fundação do mundo, para que sejamos santos e irrepreensíveis sob seu olhar, no amor. Ele nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por intermédio de Jesus Cristo, com forme a decisão da sua vontade” (Ef 1, 4-5).

Ora, é doutrina comum da Igreja que no projeto divino Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora ocupam o mesmo lugar.2 Logo, é a partir de ambos que Deus constitui o universo.

A mais excelente das criaturas

Sendo Jesus a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada, Homem-Deus, Ele não tem personalidade humana, e sim divina; .é o próprio Filho, gerado e não criado, consubstancial ao Pai, embora tenha assumido nossa natureza. Maria, a Mãe de Deus, só tem personalidade humana, mas é a mais excelsa das criaturas, a realização do máximo no mundo criado e mesmo no mundo das criaturas possíveis que não chegaram a ser criadas. Desde toda a eternidade foi Ela causa de contentamento para as três Pessoas Divinas. Podemos imaginar que, ao contemplá-La, o Pai tenha exclamado: “Ela será minha Filha!”; o Filho tenha dito: “Ela será minha Mãe!”; e o Espírito Santo: “Ela será minha Esposa!”. E, detendo-Se em amor a Ela, cumularam-Na de tudo quanto Lhe convinha das belezas da criação e dos tesouros da graça, coroando-A com um singularíssimo dom: a Imaculada Conceição.

É importante lembrar aqui que esta, como todas as demais prerrogativas da Virgem Santíssima, defluem de seu privilégio essencial, a maternidade divina, insuperável dignidade que A eleva de forma relativa, mas autêntica, ao sétimo plano da criação, isto é, a ordem hipostática. Tais pressupostos nos permitirão compreender melhor a Liturgia desta Solenidade, a qual nos apresenta na primeira leitura e no Evangelho, respectivamente, duas passagens da Sagrada Escritura alusivas à Imaculada Conceição: o célebre versículo do Gênesis chamado de Protoevangelho (cf. Gn 3, 15) e a saudação do Anjo a Nossa Senhora (cf. Lc 1, 28). Como já foi comentado em outras ocasiões o texto de São Lucas,3 aproveitemos para tecer algumas considerações sobre a Tmaculada Conceição a partir do episódio narrado na primeira leitura (Gn 3, 9-15.20). No plano da criação traçado por Deus, também este fato estava incluído como antípoda d’Aquela que hoje celebramos.

POREI INIMIZADE ENTRE TI E A MULHER

O amor é eminentemente comunicativo: se alguém, por amor a Deus, ama a outrem, deseja dar-se por inteiro a quem ama. Assim, Deus nos ama desde toda a eternidade. Por isso, além de erigir o homem como rei da criação, colocando sob o seu domínio as criaturas, concedeu-lhe toda sorte de dons naturais, preternaturais e sobrenaturais. Adão e Eva, porém, aceitaram a oferta do demônio — “sereis como deuses” (Gn 3, 5) — e provaram do fruto proibido, sofrendo em seguida as consequências de sua desobediência. Sentindo-se esvaziados — ou seja, frustrados, sensação inevitável decorrente do pecado mortal —, eles tentaram esconder-se de Deus. Eis um erro, consequência do pecado original, no qual a humanidade vem incorrendo de geração em geração: fugir de Deus quando se comete uma falta. Tal atitude é um verdadeiro suicídio espiritual. O exemplo de Davi, de Santa Maria Madalena, de Santo Agostinho e de tantos outros Santos na História que foram atendidos superabundantemente quando, arrependidos de seus erros, apresentaram a Deus o pedido de perdão, mostra-nos quão errada foi a reação de nossos primeiros pais. Deus está a todo momento à nossa disposição para perdoar.

O pecador sempre quer se justificar

O Criador então perguntou ao homem: “Onde estás?” (Gn 3, 9). E claro que Deus sabia... Adão estava dentro d’Ele! Mas era esse um modo de invectivar sua consciência levando-o a reconhecer o pecado. E Adão procurou explicar-se: “Ouvi teu passo no jardim; tive medo” (Gn 3, 10).

Mais uma vez o Senhor o inquiriu, apesar de ter ciência de tudo quanto acontecera: “Comeste, então, da árvore que te proibi de comer!” (Gn 3, 11). Por meio desse diálogo, Deus Se adaptava ao modo de raciocinar humano para fazer Adão cair em si, pois a essas alturas ele já estava tentando esquecer a culpa. Quem comete um pecado mortal — no caso, em matéria de obediência — tem tendência a criar logo uma justificação de seu ato. Ninguém pratica o mal pelo mal.4 Adão e sua mulher pecaram com a ilusão de obter um bem: serem iguais a Deus. Por isso Adão escusou-se: “A mulher que puseste junto de mim me deu da árvore, e eu comi!” (Gn 3, 12). Ou seja, ao invés de pedir perdão, ele atribuiu a Deus a responsabilidade pelo crime, como que dizendo: “A culpa é vossa e não minha. Vós criastes esta mulher, ela me trouxe o fruto e eu comi”. Eva, por sua vez, teve a mesma reação ao ser interpelada por Deus: “A serpente me seduziu e eu comi” (Gn 3, 13). Quando a pessoa não assume o próprio erro, termina por lançar a culpa sobre outrem.

As consequências do pecado... e o plano de Deus

Terríveis são as consequências do pecado original para a humanidade. Por terem entrado na via da inimizade com Deus, Adão e Eva perderam a graça santificante e, com ela, todos os outros dons sobrenaturais. E também os dons preternaturais, como, por exemplo, o da imortalidade, o de integridade — perfeito equilíbrio entre as paixões, a razão e a vontade — e, no caso de Adão, a ciência infusa. A natureza humana, inclusive, se debilitou,5 porque a inteligência se obscureceu e a vontade ficou tendente a escolher o mal. Adão e Eva tornaram-se fracos na luta contra as tentações. E esta a herança que deles recebemos, pois somos seus descendentes.

Não havia uma só criatura humana capaz de saldar essa dívida. E embora Deus bem pudesse ter perdoado o pecado gratuita e livremente, uma vez que Ele é o ofendido e o Juiz, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade quis oferecer a reparação ao Pai, encarnando-Se para operar a Redenção. Por isso, logo depois de amaldiçoar a serpente, usada pelo demônio como instrumento da tentação, Deus declarou: “Porei hostilidade entre ti e a Mulher, entre tua linhagem e a linhagem d’Ela. Ela te esmagará a cabeça e tu Lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3, 15). Nestas palavras se encontra sintetizada a mensagem do Evangelho, pois “com esta divina profecia, foi clara e abertamente indicado o misericordiosíssimo Redentor do gênero humano, isto é, o Filho Unigênito de Deus, Jesus Cristo; foi designada sua Beatíssima Mãe, a Virgem Maria; e, ao mesmo tempo, foi nitidamente expressa a inimizade de um e da outra contra o demônio. [...] a Santíssima Virgem, unida com Ele por um liame estreitíssimo e indissolúvel, foi, conjuntamente com Ele e por meio d’Ele, a eterna inimiga da venenosa serpente, e esmagou-lhe a cabeça com seu pé virginal”.6

Como Nossa Senhora esmagou a cabeça do demônio? É o que lemos no Evangelho. Se Eva, ao aceitar a solicitação da serpente, atraiu a maldição sobre o gênero humano, Maria, ao dizer “Faça-se em Mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38), consentindo em ser utilizada como cenário da luta entre o Filho de Deus e satanás, venceu não só o pecado, mas também a morte.

O pecado ressalta a pureza imaculada de Maria

Ora, foi em função desse “Fiat!” que a Santíssima Virgem recebeu o dom da Imaculada Conceição, enchendo de júbilo todo o universo, porque a sua primitiva beleza, maculada com o selo da culpa de Adão, foi restaurada e recebeu algo a mais em Maria. O reino mineral, vegetal, animal, humano e espiritual, n’Ela representados, elevaram-se pela plenitude da graça de Maria e por sua participação relativa no plano hipostático. N’Ela estão sintetizados, portanto, os sete graus da criação.

Aqui se aplica o que dizíamos no início: se deixarmos de lado a perspectiva humana da sucessão cronológica dos acontecimentos e analisarmos tudo de dentro dos olhos de Deus, compreenderemos que Ele escolheu este mundo, no qual houve o pecado dos anjos e o dos homens, porque nele o mistério da Encarnação e o privilégio de Nossa Senhora, imune a todo pecado, refulgiriam com maior destaque. Se não tivesse havido a culpa original, sua pureza imaculada não seria tão refulgente e gloriosa.

A Glória da Imaculada Conceição

Segundo a expressão repetida por muitos Santos, de Maria nunquam satis — de Maria nunca se dirá o suficiente.7 E assim como nunca nos sentimos satisfeitos de ouvir falar d’Ela, também nunca nos contentamos quando se trata de glorificá-La. Estabelecida a Solenidade da Imaculada Conceição no Advento, a Igreja suspende o caráter de austeridade deste tempo litúrgico para celebrá-la com grande pompa e alegria. Entre a abundância de comentários a que tal comemoração dá ensejo, lembremo-nos de que este dom especialíssimo de Maria é um triunfo do próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, pois tudo o que Ela possui se deve ao fato de ser Mãe d’Ele. Por tal razão, o louvor que tributamos à Mãe tem como causa e termo final o Filho.

E foi precisamente a maternidade divina um dos argumentos nos quais a piedade popular se apoiou para sustentar a Conceição Imaculada, muito antes da proclamação do dogma. Pelo processo natural da gestação, Nossa Senhora deu o seu sangue para a constituição física do Salvador, de modo que a Carne e o Sangue de Jesus são a carne e o sangue de Maria. Seria um absurdo imaginar o Homem-Deus sendo formado a partir de um sangue não puro, num claustro materno maculado pela culpa original, pois de uma fonte impura não pode brotar o que é puro. Em virtude da Encarnação do Verbo, Maria tinha de ser isenta do pecado. E se nós defendemos a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, é forçoso que defendamos também a Imaculada Conceição de sua Mãe.

Mais um belo aspecto deste privilégio é a glória que ele significa para. a Igreja, da qual Nossa Senhora é Mãe. Sendo a missão da Igreja combater o pecado, diminuir os seus efeitos e distribuir a graça às almas, não pode haver honra maior para ela do que ter uma Mãe e Rainha Imaculada e cheia de graça. Mas, também em relação a Maria a Igreja exerceu sua função de santificar com uma perfeição impossível de ser igualada em qualquer outra criatura: durante os anos em que a Santíssima Virgem viveu depois da Ascensão de Jesus, orientando e amparando maternalmente a Igreja nascente, Ela se beneficiou do Sacramento da Eucaristia, e cada Comunhão aumentava n’Ela, em imensas proporções, o extraordinário tesouro de graça recebido em sua Concepção Imaculada.

A proclamação do dogma

Coube ao Beato Pio IX — cujo longo pontificado transcorreu num período de grande tensão contra a Igreja — incluir este título mariano entre os dogmas de Fé. O ambiente católico já se encontrava preparado, sobretudo porque o Santo Padre e vários de seus predecessores há muito vinham promovendo a devoção à Imaculada Conceição, inclusive com proibição de se difundirem teses contrárias a essa doutrina.
Conta-se que, em certa ocasião, estando o Papa desterrado em Gaeta, o Cardeal Lambruschini lhe disse: “Santo Padre, Vossa Santidade não mudará o mundo senão declarando o a dogma da Imaculada Conceição”. Foi pouco depois disso, a 2 de fevereiro de 1849, que o Papa lançou a Encíclica Ubi Primum, dirigida aos Patriarcas Primazes, Arcebispos e Bispos da Igreja Universal, consultando-os sobre essa questão.8 Salvo pouquíssimas exceções — menos de dez por cento de um total de mais de 600 cartas enviadas —, as respostas foram todas favoráveis. E quando voltou a Roma, em 1850, Pio IX convocou todos os Bispos do mundo para contribuírem no trabalho da comissão encarregada de preparar a Bula de definição do dogma.9

Finalmente, a 8 de dezembro de 1854, às onze horas da manhã, reuniram-se na Basílica de São Pedro duas centenas de dignitários eclesiásticos, entre Cardeais, Arcebispos e Bispos, para a solene Missa pontifical, durante a qual se deu a cerimônia de definição do dogma. Antes do Ofertório, o Cardeal Macchi, decano do Sacro Colégio, aproximou-se do trono pontifício onde se encontrava o Papa e, em nome da Igreja, dirigiu-lhe a súplica, como prescrevia o cerimonial: “Santíssimo Padre, dignai-vos levantar vossa voz apostólica em meio à celebração do sacrifício incruento começado e pronunciar o decreto dogmático da Imaculada Conceição, que fará nascer novo júbilo no Céu e encherá de alegria todo o mundo”. Levantando-se, Pio IX deu ordem de que se entoasse o Veni Creator Spiritus, acompanhado em uníssono por todos os presentes. Concluído o cântico, o povo se pôs de joelhos e o Papa, de pé, iniciou a leitura da Bula Ineffabilis Deus, cujo auge foram as seguintes palavras:

“Depois de, na humildade e no jejum, dirigirmos sem interrupção as Nossas preces particulares, e as públicas da Igreja, a Deus Pai, por meio de seu Filho, a fim de que se dignasse dirigir e sustentar a Nossa mente com a virtude do Espírito Santo; depois de implorarmos o socorro de toda a corte celeste, e invocarmos com gemidos o Espírito consolador; por sua inspiração, em honra da santa e indivisível Trindade, para decoro e ornamento da Virgem Mãe de Deus, para exaltação da Fé Católica, e para incremento da Religião Cristã, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo, e com a Nossa, declaramos, pronunciamos e definimos:

“A doutrina que sustenta que a Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante da sua Conceição, por singular graça e privilégio de Deus Onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado original, essa doutrina foi revelada por Deus, e por isto deve ser crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis”.10

Terminada a proclamação, ouviu-se a salva do canhão do Castelo de Sant’Angelo e o repicar dos sinos da Cidade Eterna, festejando o reconhecimento oficial da Igreja a esta prerrogativa de Maria, a qual faz os Céus se rejubilarem, os infernos tremerem, enche de consolação os filhos d’Ela na Terra e de tristeza os seus adversários. Numa palavra, é um dogma que evidencia a inimizade entre a linhagem da Virgem e a de satanás.

Algumas considerações sobre a fórmula do dogma

Admiráveis são a beleza e a precisão dos termos usados na fórmula dogmática. Por exemplo, a expressão “no primeiro instante de sua Conceição” indica ter sido Maria isenta do pecado no momento em que, por assim dizer, Deus pronunciou ofiat para a sua criação e Ela passou a existir no tempo tal como fora idealizada desde toda a eternidade. Já as palavras “por singular graça e privilégio de Deus Onipotente” deixam claro que o normal seria que Nossa Senhora fosse concebida com a mancha do pecado, como qualquer filho de Adão e Eva; mas como para Deus nada é impossível, Ele quis dispensar sua Mãe dessa herança de morte. E o argumento teológico fundamental do dogma é expresso logo em seguida: “em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado original”. Explicando esta doutrina, a teologia recorre a uma expressiva analogia: os dois modos de se remir um cativo. Há casos em que ele está no cárcere e, mediante o pagamento do resgate, é posto em liberdade. Há outros, entretanto, em que a pessoa corre o risco de ser levada para o cativeiro, e antes que isto aconteça alguém paga o seu resgate. Reportando nossa imaginação àquela eterna conversa da Santíssima Trindade, podemos supor que o Filho tenha Se dirigido ao Pai, dizendo: ‘Antes que o pecado original toque em minha Mãe, Eu Lhe aplico o preço de meu Sangue que será derramado no Calvário”. Por ter sido objeto dessa Redenção preventiva, “Maria tem em comum com todos os homens o ter sido resgatada pelo Sangue de seu Filho; mas tem algo de particular, pois este Sangue foi tirado de seu casto corpo. [...J Ela tem em comum conosco que este Sangue se derrama sobre Si para santificá-La; porém tem o particular de n’Ela estar a sua fonte. De tal modo que nós podemos dizer que a concepção de Maria é como que a primeira origem do Sangue de Jesus. E dali que este belo rio começa a se espalhar, este rio de graças que corre em nossas veias pelos Sacramentos e que leva o espírito de vida para todo o corpo da Igreja”.1’

Por conseguinte, na concepção de Nossa Senhora iniciou-se a história de nossa Redenção. A Solenidade de hoje é a festa da libertação de quem era escravo do demônio e se entrega inteiramente a Nosso Senhor Jesus Cristo, pelas mãos da Santíssima Virgem. Somos filhos de Maria Imaculada! E se temos apreço por nossa mãe natural, muito maior deve ser nosso amor por Aquela que é Mãe de nossa vida sobrenatural. Cheios de gratidão, peçamos a Ela que, assim como triunfou sobre o pecado, triunfe em nossa alma, infundindo-lhe um raio de sua imaculabilidade. E que, purificados de todas as nossas misérias, sejamos assistidos por seu Divino Esposo e nos transformemos em instrumentos eficazes para a promoção de um outro triunfo, por Ela prometido em Fátima e tão desejado por nós: o do seu Sapiencial e Imaculado Coração.

1) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.25, a.6, ad 3.
2) Cf. PIO IX. Bula Ineffabilis Deus. In: DOCUMENTOS PONTIFÍCIOS. Petrópolis: Vozes, 1953, p.3-23; PIO XII. Munificentissimus Deus, n.40; JOÃO PAULO II. Redemptoris Mater, n.8; ROSCHINI, OSM, Gabriel. Instruçöes Marianas. São Paulo: Paulinas, 1960, p.22; La Madre de Dios según la fey la teología. 2.ed. Madrid: Apostolado de la Prensa, 1958, v.1, p.177-178; ROYO MARIN, OP, Antonio. La Virgen María. Madrid: BAC, 1968, p57.
3)Cf. CLA DIAS, EP, João Scognamiglio. Maria seria capaz de restabelecer a ordem no universo? In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.123 (Mar., 2012); p.10-i6; Comentário ao Evangelho da Solenidade da Anunciação do Senhor, neste mesmo volume; Comentário ao Evangelho do IV Domingo do Advento — Ano B, no Volume III desta coleção.
4) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., J-II, q.77, a.2.
5) Cf. ROYO MARIN, OP, Antonio. Dios y su obra. Madrid: BAC, 1963, p.499-500
6) PIO IX, op. cit.
7) Cf. SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge, n.1O. In: OEuvres Complètes. Paris: Du Seuil, 1966, p.492-493.
8) Cf. BIBLIOTHÈQUE DES ÉCOLES CHRÉTIENNES. Pie IX Nouvelle Biographie. Tours: Mame et  1852, p.84-89.
9) Cf. VILLEFRANCHE, Jacques-Meichior. Pio IX. Sua vida, sua história e seu século. São Paulo: Panorama, 1948, p.130-133.
10) PIO IX, op. cit.

11) BOSSUE1 Jacques-Bénigne. IP Sermon pour la Fête de la Conception de la Sainte Vierge. In: OEuvres choisies. Versailles: Lebel, 1822, v.X, p.34.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Evangelho 3º Domingo do Advento ( Domingo Gaudete) Ano A - 2013

Comentários ao Evangelho III Domingo do Advento  Mt 11, 2-11 ( Domingo Gaudete) Ano A – 2013
 Mons João Clá Dias
“Naquele tempo, 2 João estava na prisão. Quando ouviu falar das obras de Cristo, enviou-Lhe alguns discípulos, 3 para Lhe perguntarem: ‘És Tu, Aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro?’.
4 Jesus respondeu-lhes: ‘Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: 5 os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados. 6 Feliz aquele que não se escandaliza por causa de Mim!’.
7 Os discípulos de João partiram, e Jesus começou a falar às multidões sobre João: ‘O que fostes ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? 8 O que fostes ver? Um homem vestido com roupas finas? Mas os que vestem roupas finas estão nos palácios dos reis.
9 Então, o que fostes ver? Um profeta? Sim, Eu vos afirmo, e alguém que é mais do que profeta. 10 É dele que está escrito: ‘Eis que envio o meu mensageiro à tua frente; ele vai preparar o teu caminho diante de Ti’. 11 Em verdade vos digo, de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do que João Batista. No entanto, o menor no Reino dos Céus é maior do que ele’” (Mt 11, 2-11).


Uma lufada de ânimo para chegar até o fim
Dizia o célebre teórico de guerra Karl von Clausewitz1 que a melhor forma de vencer um adversário é fazê-lo perder o ânimo de combater, pois a quebra de sua força moral é a causa principal de seu aniquilamento físico. Assim, quando empreendemos uma ação com desânimo, não atingimos a meta. Pelo contrário, quem tem uma confiança sólida, baseada numa fé vigorosa, desenvolve energias e entusiasmo para perseverar até o fim com galhardia. Se, por acaso, na realização de um árduo esforço, sentimos faltar o fôlego, basta uma lufada de esperança para redobrar as boas disposições e garantir o sucesso.
A Igreja, no 3º Domingo do Advento — chamado Domingo Gaudete —, tem em vista este propósito: fazer uma pausa nas admoestações do período de penitência e amenizar a tristeza causada pela lembrança dos pecados cometidos, para considerar com alegria a perspectiva do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em breve seremos libertados de nossa miséria, se soubermos ouvir os seus ensinamentos e nos abrirmos às graças que Ele nos traz, e poderemos seguir adiante com entusiasmo, confortados pela certeza de que nos será dada a salvação. Esse verdadeiro gáudio pela próxima vinda do Redentor é a nota tônica desta Missa, simbolizada pela cor rósea dos paramentos e expressa nos textos litúrgicos, sem, todavia, excluir totalmente o caráter penitencial. Depois do pecado original, a cruz tornou-se indispensável para obtermos a glória no cumprimento da finalidade para a qual fomos criados.
A sede de felicidade da criatura humana
Se voltarmos nossa atenção para cada criatura humana, encontraremos em todas elas o desejo de alcançar a felicidade. Quando Adão, belíssimo boneco de barro, saiu das mãos divinas e lhe foi infundido um sopro de vida, já possuía ele essa aspiração que era atendida com largueza por sua participação na própria natureza de Deus, a Felicidade Absoluta. Tão elevada era a figura deste varão que o Senhor ia visitá-lo no Paraíso, à hora da brisa da tarde (cf. Gn 3, 8). Eram felizes nossos primeiros pais! Porém, expulsos daquele local de delícias em consequência do pecado, Adão e Eva viram-se obrigados a habitar este mundo repleto de dificuldades, sem perder, entretanto, aquele anseio de felicidade. Ardiam de desejo de retornar ao estado de outrora, de gozar das maravilhas que tinham conhecido no Éden. Mais tarde, constituído o povo de Israel, especialmente amado pela Providência, esperava ele o advento de um Salvador que o tirasse dessa desditosa situação.
Com o transcurso dos séculos e dos milênios, os hebreus ― sempre numa tremenda instabilidade e submetidos à escravidão por diversas vezes ― foram alimentando a ideia de  que o Messias seria um homem aquinhoado por dons meramente naturais, portador de soluções humanas e políticas para todos os problemas. Sua grande incógnita era acerca da vinda deste enviado que traria a felicidade, a qual já não concebiam como uma condição semelhante à do Paraíso, mas segundo padrões terrenos. Algo parecido ocorre conosco, pois sabemos que o centro de nossa vida e a fonte da alegria é Nosso Senhor Jesus Cristo; contudo, as ilusões do mundo apontam para uma pseudofelicidade baseada em boa carreira, na aquisição de um valioso patrimônio, numa posição de prestígio, num vantajoso casamento ou, talvez, em negócios lucrativos. Numa palavra, a felicidade para os que assim pensam está na matéria, e não em Deus. Eis aí o lamentável equívoco.
Para desfazer esta falácia, a Liturgia do Domingo da Alegria nos indica o verdadeiro caminho da felicidade e oferece um exemplo seguro a seguir.
A alegria de cumprir a própria missão
O episódio narrado na sequência evangélica do 3º Domingo do Advento dá-se em circunstâncias muito especiais. Nosso Senhor estava adentrando o segundo ano de sua vida pública e já realizara inúmeros milagres, encontrando-Se de regresso da pequenina cidade de Naim, onde por sua iniciativa ressuscitara o filho de uma viúva (cf. Lc 7, 11-15). Ao passar pelas estradas tortuosas da região entrou no vilarejo e deparou-Se com alguns homens transportando um morto. Mandou parar o cortejo e restituiu a vida ao defunto, entregando-o em seguida à sua mãe. Este fato teve enorme repercussão que, somada à de muitos outros, moveu Israel inteiro a falar do grande Profeta que havia surgido.
O Precursor pagou sua fidelidade à verdade com a prisão
“Naquele tempo, 2a João estava na prisão”.
João Batista, varão íntegro que recentemente abalara Israel com sua pregação e exemplo de vida, havia sido preso. Em sua retidão, o Precursor dissera algumas verdades ao rei Herodes Antipas ― que, escravo das próprias paixões, era dominado por uma concubina, a esposa de seu irmão Filipe ― e, por isso, o tirano resolvera prendê-lo. Pungente contraste: as paixões desregradas e soltas de Herodes dão-lhe uma liberdade de ação ilegítima, e a honestidade de João leva-o à prisão.
Na perspectiva do Domingo Gaudete surge uma pergunta: qual dos dois goza de autêntica alegria, Antipas, o adúltero, ou São João, encarcerado por sua fidelidade? Devemos nos compenetrar de que Deus criou o homem para um destino eterno, no gáudio ou no sofrimento. Portanto, a verdadeira alegria é a que nos conduz à felicidade do Céu, e não aquela que nos acarreta a desgraça sem fim. No entanto, a humanidade bem gostaria de criar uma terceira via: um limbo onde não houvesse sofrimento nem possibilidade de visão beatífica, mas apenas uma vida natural, puramente sensitiva, pela eternidade inteira.
Lembremo-nos da importante máxima: “non datur tertius ― não há uma terceira posição”. Esta foi inventada por satanás ao cair do Céu e é feita de fumaça, é ilusória, pois na realidade não existe: ou violamos a moral e damos vazão às nossas más inclinações, reproduzindo em nós a pseudoalegria de Herodes Antipas, ou somos íntegros, a exemplo de João, e também nós estamos a todo instante na “prisão”, ou seja, subjugando e acorrentando nossas tendências e paixões desordenadas.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Evangelho 2º Domingo do Advento - Ano A - 2013 - Mt 3, 1-12

Neste Ano 2013 o 2º Domingo do Advento coincide com a Solenidade da Imaculada Conceição. Clique aqui para ler os comentários

Conclusão dos comentários ao Evangelho II Domingo do Advento - Ano A - 2013 - Mt 3, 1-12
Mons João Clá Dias
Causa da perdição de outros
7b “...quem vos ensinou a fugir da ira que vai chegar?”
A seguir, o Precursor os ameaça, lembrando-lhes o iminente castigo de Deus. Ao falar em “fugir da ira”, refere-se mais uma vez aos subterfúgios elaborados pela consciência de quem procura parecer santo diante dos outros, e vive de um modo que não condiz com sua exterioridade. Tal era a situação deles, preocupados que estavam com a figura a representar face ao povo e não com a autêntica mudança de vida preconizada por São João Batista. Quem ludibria os outros desta forma faz o papel da serpente que mentiu a Eva, pertence à “raça de víboras” dos fariseus e saduceus, e junto com eles incorre na ira divina.
8 Produzi frutos que provem a vossa conversão”.
Ao fazer esta exigência, São João afirma tacitamente que os frutos produzidos até então eram o contrário das obras da virtude. Com efeito, os fariseus e os saduceus, cada um à sua maneira, se aproveitavam da força da palavra de Deus, da qual se diziam transmissores, para enganar os outros, desviando-os da verdadeira Religião. Além disso, como não buscavam a perfeição, davam o mau exemplo característico dos hipócritas, que “proclamam que conhecem a Deus, mas na prática O renegam” (Tt 1, 16). Quantas almas eles teriam lançado no inferno por causa dos escândalos provocados pela sua duplicidade de vida?
O próprio Nosso Senhor apontaria, mais tarde, a gravidade desse pecado: “Vós fechais aos homens o Reino dos Céus. Vós mesmos não entrais e nem deixais que entrem os que querem entrar” (Mt 23, 13). No dia do Juízo Final, estes que se condenaram levantar-se-ão para acusar aqueles que foram causa de sua perdição.
Daí decorre uma importante lição para nós: quem não tem sua própria alma em ordem, não conduz os outros à virtude. Para fazermos o bem ao próximo, a vida interior é fundamental, como ensina o excelente tratado A alma de todo apostolado: “Seja nossa vida interior como um tronco túmido de seiva robusta a desatar-se sempre em flores de nossas obras. Uma alma de apóstolo! Mas é ela a primeira que deve ser inundada de luz e inflamada em amor, a fim de que, refletindo essa luz e esse calor, possa esclarecer e abrasar depois as outras almas. O que viram, o que consideraram com os próprios olhos, o que quase palparam com as mãos, eles o hão de ensinar aos homens (cf. I Jo 1, 1)”.
De nada adiantarão as aparências...
9 “Não penseis que basta dizer: Abraão é nosso pai, porque eu vos digo: até mesmo destas pedras Deus pode fazer nascer filhos de Abraão”.
O Precursor lembra, então, que diante do Divino Juiz não adianta invocar as aparências: “Abraão é nosso pai”. Argumento cogente para os que assistiam à pregação, pois, segundo a ideia comum entre os judeus, o simples fato de descender de Abraão já garantia, de si, a salvação eterna. Ora, se Deus pode fazer nascer das pedras brutas filhos de Abraão, a atitude que nos cabe é invocar a sua graça, enquanto estamos neste mundo. Entretanto, nunca poderemos dizer que somos verdadeiros filhos de Abraão — ou seja, herdeiros da promessa feita a ele e à sua descendência, isto é, a Cristo (cf. Gal 3, 16) — se estivermos abraçados ao pecado, ainda que o ocultemos sob a capa da virtude. É o que afirma o próprio Nosso Senhor: “Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão” (Jo 8, 39).
Pelos frutos se conhece a árvore
10 “O machado já está na raiz das árvores, e toda árvore que não der bom fruto será cortada e jogada no fogo”.
Depois de tão tremenda acusação pública, São João faz uma advertência usando a expressiva imagem da árvore estéril. Se a árvore que não produz bom fruto só serve para ser cortada e lançada ao fogo, quanto mais aquela cujos frutos são maus e prejudiciais para os outros! Por tal motivo, às vezes é mister uma intervenção de Deus para interromper o avanço do mal; do contrário, o inferno continuaria a se encher das criaturas que Ele fez para render-Lhe perfeita e eterna glória no Céu. O machado se encontra na raiz das árvores, pois “em todo lugar estão os olhos do Senhor, observando os maus e os bons” (Pr 15, 3). E o fogo eterno aguarda aqueles que, não querendo se converter, vivem no pecado e condenam outros pelo seu péssimo exemplo.
Anúncio do Messias que vem para salvar… e condenar
11 ‘“Eu vos batizo com água para a conversão, mas Aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu. Eu nem sou digno de carregar suas sandálias. Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo”.
Subitamente, o discurso muda de tom, pois o foco passa a ser Nosso Senhor. Destacando a substancial diferença entre o batismo penitencial e o Sacramento que seria trazido pelo Redentor, João Batista sublinha sua completa submissão a Jesus, dizendo-se indigno de carregar suas sandálias, gesto que caberia a um simples escravo. Põe, assim, a figura de Nosso Senhor no verdadeiro lugar de precedência aos olhos do povo, dando mostras da humildade que foi uma constante em sua missão de anunciador de Cristo: “Importa que Ele cresça e que eu diminua” (Jo 3, 30).
12 “Ele está com a pá na mão; Ele vai limpar sua eira e recolher seu trigo no celeiro; mas a palha Ele a queimará no fogo que não se apaga”.
Concluindo suas palavras, o Precursor revela quem será o executor da sentença antes anunciada: o Messias, o mesmo que vem para salvar, batizando “com o Espírito Santo e com fogo”, está prestes a lançar a palha “no fogo que não se apaga”. Na hora do Juízo, se desvanecerá a ilusão dos que julgam ser possível dar um jeitinho diante de Deus e ir para o Céu, ainda que tenham levado uma vida contrária aos seus caminhos. Não haverá mais comiseração nem condescendência da parte do Criador: se a “árvore” não produziu o que deveria e morreu na inimizade com Deus, será lançada “na fornalha ardente, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13, 42). E não pensemos que basta o caráter de cristão para nos livrar da desgraça eterna. Pelo contrário, é ele uma agravante da nossa condenação, pois implica uma recusa maior da graça.
NOSSA ESPERANÇA DEVE ESTAR EM DEUS
Convidando-nos a pensar um pouco nesses acontecimentos dos quais nenhum de nós escapará — a morte e o Juízo —, as palavras de São João neste 2º Domingo do Advento mostram a necessidade de mudar a mentalidade. Se nos analisássemos honestamente, pelo prisma deste Evangelho, constataríamos quantos princípios mundanos deixamos entrar na alma ao longo do tempo, iludindo-nos com uma falsa segurança e estabilidade. Será, por exemplo, o igualitarismo nascido do orgulho, será o materialismo, que faz viver em função da técnica ou do dinheiro, entre outros desvios. E nessa perspectiva que temos de considerar a conversão à qual São João Batista nos exorta, e nos prepararmos para o momento do comparecimento perante o tribunal de Deus.
Juízo que devemos encarar com esperança verdadeiramente cristã, ou seja, com inteira confiança em Deus e nos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo, que perdoará nossos pecados e misérias desde que os reconheçamos, arrependidos. Se vivermos com esta disposição de alma, atingiremos a santidade, metade todo batizado, e alcançaremos a plena participação na vida de Deus, como sublinha a Oração do Dia: “O Deus todo poderoso e cheio de misericórdia, nós vos pedimos que nenhuma atividade terrena nos impeça de correr ao encontro do vosso Filho, mas, instruIdos pela vossa sabedoria, participemos da plenitude de sua vida”.8
1) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Suppi., q.87, a.2.
2) Cf. GOMA Y TOMAS, Isidro. El Evangelio explicado. Introducción, Infancia y vida oculta de Jesús. Preparación de su ministerio público. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, v.1, p.332; 403; FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Infancia y Bautismo. Madrid: Rialp, 2000, v.1, p.295.
3) BOURGET, Paul Le démon du midi, apud CORRÊA DE OLIVEIRA Plinio. Revolução e Contra-Revolução 5.ed. São Paulo: Retornarei, 2002, p.41.
4) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., III, q.38, a.3.
5) MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC, 1950, v.1, p.187.
6) Embora na tradução litúrgica do Brasil conste “raça de cobras venenosas”, o texto grego fala (gennhma ecidna) e a Neo Vulgata traduz para pro genies viperarum, isto é, “raça de víboras”.
7) CHAUTARD,OCSO Jean-Baptiste.A alma de todo apostolado. São Paulo: FTD, 1962, p.66.

8) SEGUNDO DOMINGO DO ADVENTO. Oração do Dia. In: MISSAL ROMANO. Trad. Portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.130.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Evangelho 2º Domingo do Advento - Ano A - 2013 - Mt 3, 1-12

Neste Ano 2013 o 2º Domingo do Advento coincide com a Solenidade da Imaculada Conceição. Clique aqui para ler os comentários

Continuação dos comentários ao Evangelho II Domingo do Advento - Ano A - 2013 - Mt 3, 1-12
Mons João Clá Dias
Exortação à integridade de vida
Quando a pessoa se apega a algo ilegítimo, imediatamente cria uma doutrina para justificar esse mau caminho que seguiu. Porque o homem é um monólito de lógica no que diz respeito à coerência de sua conduta com seu pensamento, como expressa a frase lapidar de Paul Bourget, recolhida pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em sua célebre obra Revolução e Contra-Revolução: “Cumpre viver como se pensa, sob pena de, mais cedo ou mais tarde, acabar por pensar como se viveu”.3 Caso a pessoa não queira emendar-se — ou seja, “endireitar suas veredas” —, terminará, de fato, pensando de acordo com o modo como vive. Por conseguinte, é indispensável arrancarmos as racionalizações de nossa alma, para caminharmos com retidão nas vias de Deus.
João Batista não só exortava à integridade, como também dela dava exemplo com sua vida, modelo de completa coerência, e com seus costumes, inteiramente alheios ao comum das pessoas, como descreve São Mateus no versículo seguinte.
4 João usava uma roupa feita de pelos de camelo e um cinturão de couro em torno dos rins; comia gafanhotos e mel do campo.
Naquela época — como, aliás, também na nossa — as roupas não eram feitas de pelo de camelo, pois é um material áspero e agressivo ao tato. O traje de São João, portanto, devia causar estranheza. Ademais, trazia um cinturão de couro em torno dos rins, para mostrar que era virgem e praticava a castidade. Quanto à sua alimentação, consistia em gafanhotos e mel silvestre, dado que nos permite imaginar o teor de sua penitência. Impedidos pelo reflexo de repugnância, muitos de nós não suportaríamos comer um desses insetos, se a isto fôssemos obrigados.
São João rasga o véu das falsas aparências
5 Os moradores de Jerusalém, de toda a Judeia e de todos os lugares em volta do rio Jordão vinham ao encontro de João. 6 Confessavam seus pecados e João os batizava no rio Jordão.
O que ocasionou essa movimentação popular em torno do Precursor, a ponto de virem israelitas de todas as partes da Palestina para estar com ele? Dentre outras razões, a comprovação de que ele dizia a verdade. E os que acolhiam suas palavras com boas disposições decidiam começar uma nova vida. Para dar esse passo, confessavam seus pecados e recebiam o “batismo de arrependimento” (Le 3, 3), o qual não era o Sacramento instituído depois por Nosso Senhor, mas um rito simbólico, uma espécie de sacramental que, mediante a penitência, preparava as almas para receber o Salvador.4 Era assim que João reconduzia muitos “rebeldes à sabedoria dos justos” (Le 1, 17).
Contudo, junto a estes que se convertiam havia alguns que não queriam ouvir...
7ª Quando viu muitos fariseus e saduceus vindo para o batismo, João disse-lhes: “Raça de cobras venenosas...”
Os fariseus e os saduceus, cuja influência dominava todo o panorama sócio-político judaico da época, estavam sempre muito atentos a qualquer variante na opinião pública, pois não lhes era conveniente perder o apoio das bases da sociedade. O entusiasmo pela figura do Precursor suscitado nas multidões, que afluíam para ouvi-lo, supunha para os membros de um e de outro partido uma ameaça ao seu poder. Querendo causar a impressão de que também haviam aderido à onda de fervor religioso, resolveram ir ao encontro de João. Não obstante, como eles se julgavam perfeitos a ponto de não terem pecado algum, sua intenção não era a de confessarem suas culpas, mas apenas receber o batismo como um carimbo que os justificasse aos olhos da opinião pública.
Quando o profeta os viu, “discerniu que não vinham com disposição sincera, mas fingida e dissimulada, o que era muito conforme à maneira de ser deles”.5 Por isso não hesitou em repreendê-los: “Raça de víboras!”.6 E não devemos imaginar São João dizendo isto em voz baixa ou de forma pouco expressiva. Decerto ele possuía uma voz possante que, por assim dizer, atingia a espinha dorsal dos ouvintes como se o próprio Deus lhes falasse. Na verdade, João, “cheio do Espírito Santo” (Lc 1, 15), representava a Deus e transmitia sua vontade.

Ora, a serpente foi o animal utilizado por satanás, no Paraíso, para levar Eva ao pecado. Este marca tanto que, mesmo sendo criatura irracional — sem livre arbítrio, portanto, incapaz de ter culpa —, foi ela amaldiçoada pelo Criador, tornando-se desde então um símbolo da maldade. E víbora foi o título dado por São João aos fariseus e saduceus por serem instrumento de pecado para outros. Mais tarde, Nosso Senhor lhes repetirá esta censura (cf. Mt 12, 34; 23, 33) e acrescentará outras ainda mais severas e incisivas.
Continua no próximo post

domingo, 1 de dezembro de 2013

Evangelho 2º Domingo do Advento - Ano A - 2013 - Mt 3, 1-12

Mons João Clá Dias

Naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judeia: 2 “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”.  João foi anunciado pelo profeta Isaías, que disse: “Esta é a voz daquele que grita no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas!”
João usava uma roupa feita de pelos de camelo e um cinturão de couro em torno dos rins; comia gafanhotos e mel do campo.  Os moradores de Jerusalém, de toda a Judeia e de todos os lugares em volta do rio Jordão vinham ao encontro de João. 6 Confessavam seus pecados e João os batizava no rio Jordão.  Quando viu muitos fariseus e saduceus vindo para o batismo, João disse-lhes: “Raça de cobras venenosas, quem vos ensinou a fugir da ira que vai chegar? 8 Produzi frutos que provem a vossa conversão. Não penseis que basta dizer: Abraão é nosso pai’, porque eu vos digo: até mesmo destas pedras Deus pode fazer nascer filhos de Abraão.
O machado já está na raiz das árvores, e toda árvore que não der bom fruto será cortada e jogada no fogo. ‘Eu vos batizo com água para a conversão, mas Aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu. Eu nem sou digno de carregar suas sandálias. Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo. 2 Ele está com a pá na mão; Ele vai limpar sua eira e recolher seu trigo no celeiro; mas a palha Ele a Queimará no fogo que não se apaga” (Mt 3, l-12).
Tempo de uma nova conversão
Ao invectivar a hipocrisia dosfariseus e saduceus, São João nos põe na perspectiva do Juízo Final, do qual ninguém poderá escapar. Naquele dia, de nada valerão as exterioridades se não tivermos produzido frutos que provem a nossa conversão.
ADVENTO, TEMPO PARA UMA REVISÃO
Quando um navio vai sair do estaleiro pela primeira vez, é costume realizar-se uma cerimônia na qual a nova ‘ embarcação recebe o nome e, como desfecho do ato, uma garrafa de champanhe é quebrada de forma espetacular no casco, escorrendo ali todo o seu precioso líquido. Segundo uma antiga crença, quanto melhor for a qualidade do espumante maior será a probabilidade de que o navio singre os mares com segurança. Depois disso, com o costado recém-pintado, liso e completamente limpo, a embarcação é lançada na água e começa a navegar pelos oceanos. Com o passar dos anos a velocidade do navio vai diminuindo, não por perda de força do motor, mas porque no casco se incrustam moluscos em grande quantidade que dificultam a navegação. Para recuperar a rapidez inicial é imperioso retornar ao estaleiro e remover essa crosta. Também os automóveis quando são novos funcionam bem, e depois de certo tempo de uso é necessário submetê-los a uma revisão, a fim de garantir o bom desempenho de seu mecanismo.
Em relação à saúde, nossa situação é parecida. Periodicamente temos de nos submeter a um checkup médico ou ir ao dentista para verificar se tudo está em ordem. Mas, sobretudo, necessitamos fazer uma revisão.., da alma. Temos de analisar com frequência nossa vida espiritual, porque, apesar de sermos batizados, recebermos os Sacramentos com assiduidade e praticarmos com seriedade a Religião, é frequente passarmos por circunstâncias que nos levam a cometer certas imperfeições ou a nos apegarmos às vaidades deste mundo, e adquirimos manias e maus hábitos.
Muitas vezes julgamos que cada um existe por si, independente de Deus e sem relação com os demais, e que ninguém vê nossos pensamentos e ações ocultas. Entretanto, é só uma questão de tempo para tudo se tornar público. Nossa situação é semelhante à de uma pessoa que, possuindo um documento comum importante segredo, o pusesse num envelope dentro de um cofre de banco. E à noite, porém, recebesse a visita de um Anjo, enviado por Deus, com a ordem de comunicar aquele texto secreto à humanidade inteira... Assim será o Juízo Final: todos os nossos pensamentos, desejos, maquinações, tudo o que tivermos feito de bom e de mau será conhecido por todos os homens, bem-aventurados ou condenados, sem exceção de ninguém, inclusive pelos Anjos e pelos demônios, como nos ensina a doutrina católica.1
É por isso que, na sua extraordinária sabedoria, a Igreja distribui a Liturgia ao longo do ano de maneira a nos proporcionar, em determinados momentos, a oportunidade de fazer a nossa revisão espiritual. Um desses períodos é o Advento, tempo de conversão, ou seja, tempo de exame de consciência, de penitência e de mudança de vida. A pregação de São João Batista, recolhida por São Mateus no Evangelho de hoje, nos oferece preciosos elementos para isso.
“Convertei-vos…”
1 Naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judeia.
Podemos delinear melhor o cenário da atividade do Precursor reportando-nos à narração de São Lucas, o qual registra que João “percorria toda a região do Jordão” (Lc 3, 3). Devido à proximidade do rio, em cujas margens cresce abundante vegetação, este local corresponde a uma parte menos agreste da inóspita e extensa zona circunvizinha ao Mar Morto, conhecida pelo nome de deserto da Judeia. De fato, São João vivera os anos precedentes à sua missão pública nas paragens solitárias situadas mais ao norte deste descampado, onde também, mais tarde, Nosso Senhor passaria os quarenta dias de jejum, depois de ser batizado.2
Ouçamos as palavras que João Batista proferia, procurando aplicá-las à nossa situação pessoal.
A falsa esperança do mundo
2 “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”.
No Batismo, todos recebemos uma semente do Reino de Deus, que devemos fazer crescer em nós pela prática da Religião, enquanto esperamos o momento de possuí-lo em plenitude, na eternidade. Todavia, no mundo moderno essa esperança da vida eterna é substituida por outra esperança, cujo objeto não é Deus: é a técnica, são as invenções e as descobertas científicas, que tornam a existência humana mais agradável e a prolongam de modo considerável. Chega-se até mesmo a admitir a ideia de que a ciência ainda fará surgir o elixir cujas propriedades tornarão imortais os homens. Ora, a tecnologia e a medicina podem, na verdade, aumentar o número de nossos dias, mas não eternizá-los. Chegará a hora em que elas de nada adiantarão e deixaremos este mundo. Aí termina a esperança mundana, como ensina o Livro da Sabedoria: “E como poeira levada pelo vento, e como uma leve espuma espalhada pela tempestade; ela se dissipa como o fumo ao vento, e passa como a lembrança do hóspede de um dia” (5, 14). Nesse sentido, a admoestação do Precursor é muito clara e atual para nós: trata-se de fazer penitência desses desvios,pois o Reino dos Céus não é dos que põem sua segurança no progresso, na máquina ou no conforto material, e sim daqueles que confiam em Deus e têm sua esperança posta na eternidade.
O risco de se tornar surdo para Deus
João foi anunciado pelo profeta Isaías, que disse: “Esta é a voz daquele que grita no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas!”

Aplicada pelos quatro evangelistas à pessoa de São João Batista, esta passagem de Isaías possui um profundo simbolismo que nos lembra quão oportuna é para nós a mensagem do Precursor. Chama a atenção que o profeta localize a missão de João “no deserto”. Devemos interpretar esta menção num sentido mais metafórico que propriamente físico: João gritava e era ouvido por aqueles que estavam “no deserto”, ou seja, no inteiro desprendimento de tudo o que não conduz a Deus. Quando alguém, pelo contrário, está no bulício da “cidade”, aferrado ao que nela existe: a vaidade, as máquinas, o relacionamento humano que afasta da virtude, etc., fica surdo à voz que o convida à conversão. A primeira vista, muitas dessas coisas podem parecer legítimas. No entanto, quem se apega ao que é lícito esquecendo-se de Deus, logo estará apegado também ao que é ilícito. Em nosso caso concreto, quantos afetos desordenados não estão impedindo que ouçamos o clamor de São João, dirigido a nós a todo instante, seja por moções interiores da graça em nossa alma, seja pela ação de outros?

Continua...