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sábado, 28 de dezembro de 2013

SOLENIDADE DA SANTA MÃE DE DEUS, MARIA — 1 DE JANEIRO —

Comentários ao Evangelho - Lc 2, 16-21
Naquele tempo, 16os pastores foram às pressas a Belém e encontraram Maria e José, e o recém-nascido deitado na manjedoura.
17Tendo-O visto, contaram oque lhes fora dito sobre o Menino. 18E todos osque ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam.
19Quanto a Maria, guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração.
20 Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido, conforme lhes tinha sido dito. 21 Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do Menino, deram-Lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo Anjo antes de ser concebido (Lc 2, 16-2 1).
Predestinada desde toda a eternidade
Da consideração do maior dentre os privilégios marianos emanam maravilhas que nos permitem vislumbrar a sublime grandeza da Mãe de Deus e nossa.
UM PRIVILÉGIO CONCEBIDO DESDE SEMPRE
A Igreja escolhe o primeiro dia do calendário civil para celebrar a maternidade divina de Nossa Senhora, a fim de que iniciemos o ano por meio da gloriosa intercessão de Maria. Ela derrama sobre nós suas bênçãos de maneira muito especial nesta Solenidade, cuja coincidência com a Oitava do Natal nos indica que a melhor forma de louvar o Menino Jesus é exaltar as qualidades da Mãe d’Ele e nossa, bem como a melhor forma de elogiar a Mãe é festejar o nascimento de seu Divino Filho.
A Liturgia nos apresenta leituras breves, porém cheias de significado. Embora não sejam propostas diretamente por Deus, mas por comissões de peritos que extraem das Sagradas Escrituras as passagens mais adequadas para cada celebração, o Espírito Santo os assiste nesse trabalho a fim de que seja realizado do modo mais perfeito, apesar da insuficiência do homem.
Elevada acima de toda a criação
Convém ressaltar que a, presença de Nossa Senhora nas Escrituras é muito discreta. E possível que Ela mesma tenha pedido aos evangelistas que sua pessoa figurasse num segundo plano nas páginas sagradas, não só por humildade, mas também para evitar o risco de Lhe atribuírem natureza divina. De fato, isto ocorreu nos primeiros tempos da Igreja, em algumas regiões onde chegaram a cultuá-La como deusa.1
Sob certo aspecto, explica-se o surgimento dessa errônea crença, que a Igreja soube retificar. Em razão da maternidade divina, Maria está tão unida ao mistério da Encarnação do Verbo que, mesmo possuindo natureza estritamente humana, Ela participa, de maneira relativa, do mais alto grau da criação: a ordem hipostática que, de forma absoluta, pertence apenas a Cristo.2 Portanto, está Nossa Senhora tão acima de todos os outros planos criados — mineral, vegetal, animal, humano, angélico e o da graça —, que é compreensível certa dificuldade em considerá-La como mera criatura humana favorecida com graças insuperáveis.
Uma benção da Antiga Aliança que atinge sua plenitude em Maria
A primeira leitura, tirada do Livro dos Números (6, 22-27), traz a fórmula da bênção transmitida pelo próprio Deus aos sacerdotes de Israel e usada pela Santa Igreja até hoje. O povo judeu a recebia todos os dias, pela manhã e à tarde, quando o sacerdote saía do santuário depois de ter oferecido o incenso a Deus no altar dos perfumes.3 Ao contrário de outras bênçãos que enfatizam a obtenção de benefícios materiais, esta se centra na vida sobrenatural. Embora os dons naturais nos sejam concedidos por Deus, devem frutificar com vistas ao seu serviço. De que adiantará a alguém possuí-los em profusão, se Deus não o abençoar? Nunca produzirá frutos para a eternidade.
Atrai nossa atenção em particular, nesta Solenidade, o fato de todas as bênçãos da Antiga Aliança, outorgadas por Deus ao povo de Israel através de Aarão, se terem concentrado em Nossa Senhora e n’Ela produzirem seus efeitos máximos, sem nenhuma fimbria de insuficiência.
Um altíssimo privilégio, concebido por Deus desde toda a eternidade
A grandeza de Maria aparece com maior evidência no trecho da Carta aos Gálatas escolhido para a segunda leitura (cf. Gal 4, 4-7), no qual São Paulo sublinha que Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu de uma mulher: “Quando se completou o tempo previsto, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei, a fim de resgatar os que eram sujeitos à Lei e para que todos recebêssemos a filiação adotiva” (Gal 4, 4-5). Se humanizarmos um pouco a figura de Deus, como tantas vezes o faz a Escritura, podemos imaginá-Lo esperando “o tempo previsto” para o nascimento da Mãe do Redentor. Mas, na realidade, Ele — para quem tudo é presente —concebeu eternamente a obra da criação e, no centro desta, num só ato de sua vontade divina e num mesmo e idêntico decreto, predestinou a Jesus e Maria.4 Portanto, no plano da Encarnação do Verbo, estava também contido o dom singularíssimo da maternidade divina de Nossa Senhora. Ambos, Mãe e Filho, inseparáveis, são a arquetipia da criação, a causa exemplar e final em função da qual todos os outros homens foram predestinados, “para a glória dos dois, como um cortejo real para Eles”.5
Isto nos faz compreender porque, dentre os incontáveis privilégios de Maria — dos quais a abundante coletânea de títulos acumulados pela piedade católica para louvá-La nos dá uma pálida ideia —, o principal é o de ser Mãe de Deus. Comparados com este, todos os outros são ínfimos! Deus poderia ter escolhido um meio distinto para assumir nossa natureza e estar entre nós, mas Ele quis tomar Nossa Senhora como Mãe. Para uma pessoa humana é impossível uma prerrogativa superior a esta, e por isso, como ensina São Tomás,6 Ela Se encontra na categoria das criaturas perfeitas, à qual pertencem apenas duas mais: a humanidade santíssima de Jesus e a visão beatífica. Este privilégio toca na essência mais profunda de Maria e é dele que Lhe defluem os demais.
A obediência de Maria abriu as portas da graça
É evidente que Ela preza muitíssimo este dom, e decerto as palavras são insuficientes para referir as elevadas considerações que Ela teceu a respeito, desde o momento de seu “Fiat!”, quando percebeu por inteiro o que significava para Ela ser Mãe de Deus. Não obstante, como diz o adágio latino, nemo summus fit repente — nada de grandioso acontece de repente. Longe de ser um fato súbito que colheu Nossa Senhora de surpresa, o anúncio de São Gabriel foi o auge de um processo, como São Luís Grignion de Montfort tenta descrever: “A divina Maria teve, em quatorze anos de vida, tal crescimento na graça e na sabedoria de Deus, e uma fidelidade tão perfeita ao seu amor, que entusiasmou de admiração não só os Anjos todos, mas ainda o próprio Deus. Sua profunda humildade, levada até o aniquilamento, O encantou; sua pureza toda divina O atraiu; sua fé viva e suas orações frequentes e amorosas O forçaram. A Sabedoria foi amorosamente vencida por tão afetuosas súplicas”.7 Porém, qualquer descrição, por mais completa que seja, não passa de um traço dessa realidade, tão rica ela é.
Com tal ato de obediência à divina vontade, Maria fez com que o Filho de Deus, eterno, gerado e não criado, Se tornasse Filho de Deus no tempo, gerado e criado quanto à sua natureza humana. Santo Anselmo sintetiza este mistério numa surpreendente expressão: “Um só e o mesmo seria naturalmente, a um só tempo, o Filho comum de Deus Pai e da Virgem”.8 Nossa Senhora proporcionou ao Filho, então, a possibilidade de Se dirigir ao Pai a partir da natureza humana e a alegria de sentir-Se inferior ao Pai, de oferecer-Lhe tudo o que está ao seu alcance, na inteira obediência a Ele, do que encontramos belíssimas amostras no Evangelho. Entre outras, destaca-se a oração proferida por Jesus durante a agonia no Horto das Oliveiras: “Meu Pai, se é possível, afasta de Mim este cálice! Todavia não se faça o que Eu quero, mas sim o que Tu queres” (Mt 26, 39). E o Espírito Santo, que nada podia oferecer ao Pai nem ao Filho — porque, sendo as três Pessoas Divinas substancialmente idênticas desde toda a eternidade, tudo Lhes era comum —, pela obediência de Maria encontrou a possibilidade de Lhes apresentar muitos filhos e irmãos: todos os homens que pela graça do Batismo se tornam, por adoção, filhos do Pai e irmãos de Jesus Cristo. Portanto, “é à humanidade do Verbo e, por conseguinte, a Maria, que o Espírito Santo deve o fato de ser o Autor da grande obra da Igreja, que não é senão a continuação da Encarnação, de dar à luz os membros, assim como deu à luz a Cabeça, e de produzir para a graça e para a glória o mundo universal dos eleitos”.9
Um altar à altura de um oferecimento infinito
Já no instante da Encarnação, Jesus Se ofereceu ao Pai como vítima expiatória por nossos pecados e passou a interceder junto a Deus em nosso favor. Por isso, além de Redentor, Cristo é também a Vítima perfeita e o único Sacerdote, o qual “não tem necessidade, como os outros sumos sacerdotes, de oferecer todos os dias sacrifícios, primeiro pelos pecados próprios, depois pelos do povo; pois isto o fez de uma só vez para sempre, oferecendo-Se a Si mesmo” (Hb 7, 27). 0 seu primeiro ato foi de caráter sacerdotal.
Qual foi o altar à altura de tal oferecimento, com o qual Nosso Senhor reparou todos os pecados da humanidade e que seria mais tarde consumado no Calvário? O claustro materno de Nossa Senhora, onde Ele esteve durante nove meses, no convívio mais íntimo possível de uma criatura com o Criador. Ao longo de todo esse período, Maria formava, com o seu sangue, o Corpo sagrado do Menino Jesus no processo próprio à gestação, pelo qual o sangue materno supre a criança em suas necessidades. Desta maneira, o Sangue oferecido por Jesus ao Pai tinha por origem o sangue de Maria, que se divinizava ao se tornar parte do Corpo do Salvador. Em virtude disso, a fonte do sacerdócio de Nosso Senhor é também a maternidade divina de Nossa Senhora.
 MATERNIDADE DIVINA, CAUSA DO ÓDIO INFERNAL
À vista de toda a grandeza que este privilégio mariano encerra, não é difícil entender a razão de o demônio detestá-lo com força ímpar. Ademais, uma das hipóteses levantadas para explicar a causa da revolta de satanás é precisamente a rejeição da Encarnação do Verbo em Maria. E a própria História confirma como ele não poupou esforços, com todo o seu ímpeto de maldade, para tentar destroçar os defensores da maternidade divina aqui na Terra.
Sua sanha chegou a um auge no século V, quando o herege Nestório, Patriarca de Constantinopla, começou a propagar — apoiando-se na heresia ariana — que em Cristo existem duas pessoas, uma divina e outra humana e que, em consequência, Maria não podia ser chamada Mãe de Deus, mas somente Mãe do Cristo enquanto homem.
Ora, na gestação de uma criança a mãe não cria a alma, apenas engendra o corpo. Ninguém dirá, entretanto, que ela é mãe só do corpo do bebê. Ao receber nos braços o recém-nascido, terá ela a alegria de ser mãe de uma pessoa considerada no seu todo, corpo e alma, pois, como afirma São Tomás,1° ser concebido e nascer é algo que se atribui à pessoa toda. Da mesma forma, Maria Santíssjma concebeu, pela ação do Espírito Santo, Aquele que possui duas naturezas — a humana, formada no seu seio virginal, e a divina, comunicada pelo Pai — unidas numa só Pessoa: o Verbo de Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Filho de Deus na eternidade e Filho de Maria gerado no tempo. Logo, Eia é verdadeiramente Mãe de Deus.
Foi o ardoroso zelo de São Cirilo de Alexandria que, sob os auspícios e a bênção do Papa São Celestino I, obteve a vitória na batalha contra a heresia nestoriana, durante o Concílio de Efeso, que culminou com a definição solene da maternidade divina de Nossa Senhora como verdade de Fé: “Se alguém não confessar que o Emanuel é Deus no sentido verdadeiro e que, portanto, a Santa Virgem é deípara [Mãe de Deus] (pois gerou segundo a carne o Verbo que é de Deus e veio a ser carne), seja anátema”.11
Considerados tais pressupostos, analisemos o trecho do Evangelho recolhido pela Liturgia para esta Solenidade.
UMA CENA PREPARADA POR DEUS
Naquele tempo, 16ª os pastores foram às pressas a Belém...
Nos versículos anteriores a este, São Lucas narra a aparição do Anjo aos pastores, anunciando o nascimento de Cristo na cidade de Davi e indicando-lhes o sinal para reconhecê-Lo: “Achareis um recém-nascido envolto em faixas e posto numa manjedoura” (Lc 2, 12). Depois de ouvirem o hino de glória a Deus entoado pela “multidão do exército celeste” (Lc 2, 13), os pastores decidiram entre si: “Vamos até Belém e vejamos o que se realizou e o que o Senhor nos manifestou” (Lc 2, 15). Tão logo cessou a aparição angélica, foi este o primeiro impulso daqueles piedosos homens, que o realizaram “às pressas”.
Deus prepara os seus escolhidos
Embora pudéssemos focalizar nossa análise numa descrição histórica dos pastores, apresentando detalhes de seu modo de vida ou de seu status na sociedade judaica da época, voltemos a atenção ao aspecto sobrenatural desses personagens e consideremos, em primeiro lugar, o fato de terem sido eles escolhidos por Deus, desde todo o sempre, para receber o anúncio do nascimento de Jesus. A aparição do Anjo, preferindo-os entre tantos outros homens, não foi mero acaso. Deus nunca deixa de preparar os seus eleitos, e não podemos pensar que o mensageiro celeste tenha colhido ex abrupto os primeiros adoradores do Menino Deus, com toda a rudeza de caráter própria ao ofício por eles exercido.
À semelhança de Nossa Senhora, estes humildes camponeses foram trabalhados pela Providência Divina, já na infância — ou até mesmo em seus antepassados —, para tão grande acontecimento. Como bons judeus, eles conheciam as Escrituras, sobretudo as profecias da vinda do Messias, e, por uma ação da graça, cada vez maior era seu amor e sua apetência pela chegada do Salvador. Certamente imaginavam cenas banhadas de consolação nas quais, por exemplo, se viam oferecendo ao Redentor o melhor de si mesmos.
Na noite do nascimento do Menino Jesus, talvez eles tenham sentido uma consolação especial, num crescendo que culminou com a aparição do Anjo. Era crença comum no Antigo Testamento que todo homem que visse um Anjo morreria em breve (cf. Jz 6, 22-23; 13, 21-22). Entretanto, depois de uma primeira reação de temor (cf. Lc 2, 9), ao ouvir as palavras e o cântico da milícia celestial os pastores encheram-se de encanto, e nem sequer pensavam nisso quando os Anjos desapareceram.
Uma importante lição nos é oferecida nessa passagem: também nós fomos escolhidos por Deus desde toda a eternidade. Foi Ele quem preparou tudo para nos santificarmos, segundo nossa vocação específica. Criou graças especialíssimas para cada um de nós e, havendo fidelidade de nossa parte, elas nos serão concedidas em abundância sempre maior — sem sensibilidade, às vezes, para nos pôr à prova —, até nossa partida deste mundo.
Generosidade em atender ao chamado de Deus
A presteza dos pastores em se dirigir ao Presépio supõe que não tenham levado consigo o rebanho, pois o seu deslocamento exige certo vagar. Os animais ficaram à mercê das feras e dos ladrões. Eis aqui outra prova de estarem tomados pela graça: desejavam algo maior e nada constituiu obstáculo para encontrá-lo; senão teriam se contentado com a visão dos Anjos, permanecendo ali para guardar as ovelhas. No entanto, dóceis ao convite angélico, abandonaram tudo e, durante o tempo emque estiveram na Gruta, nem pensaram no rebanho. Sua atenção estava inteiramente posta em quem os atraíra a Belém.
Não deve ser outra a nossa forma de proceder em relação às boas-novas vindas do Céu. Quando somos chamados para uma vocação divina, precisamos rejeitar tudo o que nos impede de segui-la e ir às pressas ao encontro d’Aquele que nos convoca.
A recompensa de quem é dócil à graça
16b …e encontraram Maria e José, e o recém-nascido deitado na manjedoura.
São Lucas quis nomear Maria em primeiro lugar, pois também no Presépio Ela é nossa Medianeira junto a Nosso Senhor Jesus Cristo e a tesoureira de todas as graças.
Sem dúvida, Maria havia reclinado o Menino Jesus na manjedoura, com todo cuidado e afeto, para que os pastores pudessem adorá-Lo sem atribuir nada a Ela. A cena era a mais modesta possível, mas, por uma ação do Espírito Santo, os pastores diante do Salvador, do verdadeiro Deus, tiveram intensa alegria interior, como nunca na vida haviam sentido, que lhes dava a certeza de estar ali o Messias prometido, o Esperado das Nações. Nem repararam nos aspectos secundários, como o fato de estar Ele envolto em panos e ter como berço um cocho, pois quem tem fé não dá importância aos detalhes inferiores e só considera o cerne: queriam adorar o recém-nascido que thes fora anunciado como o Cristo Senhor.
Quando percebeu o júbilo sobrenatural que arrebatava os visitantes, quiçá a Virgem Santíssima tenha feito com que o Menino passasse pelos braços de cada um, para terem a felicidade de carregá-Lo ao colo. Se o próprio Jesus Se dá a nós na Comunhão, bem se pode conjecturar que Nossa Senhora tenha agido desse modo considerando o Sacramento da Eucaristia a ser futuramente instituído, tal a maternal idade d’Ela. Assim sendo, aquilo que Constituiu a alegria de Simeão terá sido também a alegria dos pastores.
De pastores a primeiros arautos da Boa-nova
17Tendo-O visto, contaram o que lhes fora dito sobre o Menino.
18 E todos os que ouviram os pastores ficaram maravilhados com aquilo que contavam.
Ao empregar as palavras “o que lhes fora dito”, decerto o Evangelista não se refere apenas à mensagem do Anjo. Sendo os pastores pessoas simples, é de se supor que tenham feito perguntas a Nossa Senhora sobre o porvir daquele Menino grandioso. E de maneira muito afetuosa Ela lhes deve ter contado maravilhas, inclusive considerações teológicas feitas não só a partir de revelações, mas também dos seus conhecimentos, por ser dotada de ciência infusa.
Tão entusiasmados ficaram ao receber esses tesouros de sabedoria que, ao sair da Gruta, começaram a transmiti-los a todos com os quais se encontravam. Foi o pretexto escolhido pela Providência para fazer chegar aos ouvidos do povo o eco do magno acontecimento, iniciando-se, por meio de arautos pastores, a pregação do Evangelho, O maravilhamento geral causado por esta primeira divulgação da Boa-nova atesta que os pastores haviam correspondido à graça e tinham sido objeto de uma autêntica transformação.
Eis outra importante lição para nós: só colherá frutos no apostolado aquele cuja alma estiver tomada de enlevo e admiração.
As altíssimas cogitações de Maria
19 Quanto a Maria, guardava todos esses fatos e meditava sobre eles em seu coração.
Nossa Senhora analisava tanto os dados a respeito de seu Divino Filho — a mensagem de São Gabriel, a manifestação de Santa Isabel, o cântico de São Zacarias, etc. — quanto os acontecimentos que se sucederam desde o momento da Anunciação. E, para Se fortalecer mais na fé, ia conferindo esses elementos com tudo o que já conhecia, seja devido ao dom de sabedoria e de ciência, que Ela possuía em plenitude, seja pela perfeita compreensão das Sagradas Escrituras, as quais lia “com a alma cheia de luzes, maiores que as de Isaías e as de todos os outros profetas”.12
Também os pastores, durante a visita ao Presépio, foram para Ela objeto de cuidadosa análise, pois via os efeitos que o Menino Jesus, nascido poucas horas antes, produzia na alma de cada um. Afinal, se a voz de Maria foi suficiente para purificar São João Batista ainda no seio de Santa Isabel,’3 que mudança não terá operado o próprio Deus Menino naqueles homens cheios de fervor? Constatando os efeitos e remontando-os à Causa, Ela ia constituindo uma elevadíssima teologia.
Conta-se que São Tomás de Aquino, ao sair de um êxtase, parou de escrever a Suma Teológica, declarando: “Non possum: quia omnia quæ scripsi videntur mihi paleæ — Não posso. Tudo quanto escrevi, parece-me, unicamente, palha...”.14 Se ele tivesse conversado com Nossa Senhora sobre essas cogitações, talvez não escrevesse obra teológica alguma, pois com o conhecimento de tantas maravilhas julgaria insuficiente qualquer pensamento próprio...
Da admiração ao apostolado
20 Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido, conforme lhes tinha sido dito.
Tendo comprovado com os sentidos tudo o que o Anjo e Nossa Senhora lhes haviam dito, os pastores saíram do Presépio admirados, e o manifestavam com o constante louvor a Deus que afluía a seus lábios. Tocados por uma graça que movia a fé, alimentava a esperança e fortificava a caridade, logo passaram a comunicar isso aos outros, pois o bem é eminentemente difusivo.15 Assim também devemos ser nós: quando recebemos uma graça, ou quando Deus nos envia qualquer consolação, precisamos fazer com que os demais participem dos mesmos dons.
O primeiro derramamento de Sangue do Redentor
21 Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do Menino deram-Ihe o nome de Jesus, como fora chamado pelo Anjo antes de ser concebido.
A circuncisão era o preceito dado por Deus a Abraão (cf.Gn 17, 10-14), verdadeiro privilégio que, distinguindo os judeus dos outros povos, apagava a mancha do pecado original já no Antigo Testamento e conferia a graça enquanto símbolo da fé na futura Paixão de Cristo e pré-figura do Batismo, embora as portas do Céu continuassem fechadas.’6
Nosso Senhor não tinha necessidade de Se submeter a esse ritual, pois Ele é o Sumo Bem, a Verdade por essência, o Belo Absoluto e, ao Se encarnar no seio de uma Virgem Imaculada, jamais poderia assumir nossa natureza em pecado, que era totalmente incompatível com Ele. Mas, por nossa causa, Ele quis vir “numa carne semelhante à do pecado” (Rm 8, 3), e aplicar em Si, inclusive, o remédio próprio ao pecado, a circuncisão. Além de cumprir a lei por Ele mesmo instituída, foi esse o modo pelo qual iniciou a obra da Redenção, concluída na Cruz.
Nessa perspectiva, vemos como é expressivo o nome de Jesus, cujo significado é Deus salva ou Salvador. Foi-Lhe posto este nome na cerimônia legal da circuncisão, quando verteu suas primeiras gotas de Sangue, o qual seria derramado abundantemente na Paixão em reparação por nossos pecados. E sendo o nome a coroação plena do nascimento de uma pessoa, porque é o que vai designá-la para sempre, mais uma vez o Evangelho nos reporta à maternidade divina, pois, a partir do momento em que Jesus recebeu este nome bendito, Maria pôde ser chamada, com propriedade, Mãe de Jesus, ou seja, Mãe do Salvador, Mãe de Deus.
MÃE DE DEUS… E TAMBÉM MÃE NOSSA!
Diante da riqueza da Liturgia inspirada pelo Espírito Santo para exaltar a maternidade divina de sua Esposa, devemos compreender que também nós estamos contemplados nesse privilégio de Maria. Todos os batizados fazemos parte da Santa Igreja, Corpo Místico do qual Cristo é a Cabeça e nós seus membros. Ora, quem é Mãe da Cabeça é Mãe‚ de todo o Corpo! E quando nascemos para a graça, no Batismo, passamos a participar da família divina enquanto filhos de Deus e irmãos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Também por esse aspecto Maria é nossa Mãe.
Além disso, assim como os rios correm a partir de uma nascente, a fonte de nossa vida sobrenatural é Nosso Senhor Jesus Cristo, pois “todos nós recebemos da sua plenitude graça sobre graça” (Jo 1, 16). E a Mãe desse manancial de graças é também Mãe dos riachos que d’Ele procedem.
Foi o próprio Salvador que, crucificado entre dois ladrões no alto do Calvário, deu caráter oficial à maternidade de Nossa Senhora extensiva a nós. Na pessoa de São João Evangelista, Jesus nos entregou a Ela como autênticos filhos, ao dizer: “Mulher, eis aí teu filho!” (Jo 19, 26), e ao Apóstolo: “Eis aí tua Mãe!” (Jo 19, 27). Desta forma, colocou à disposição de todos nós, seus irmãos pela graça e pela Redenção, sua própria Mãe. E Ela ama a cada um como se fosse seu filho único, a tal ponto que se somássemos o amor de todas as mães do mundo por um só filho, o resultado não alcançaria o amor que Nossa Senhora nutre por nós, individualmente.17
Encontramos nas palavras do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira uma tocante consideração a esse respeito: “Entre o Verbo Encarnado e nós há algo em comum, algo insondavelmente precioso: temos a mesma Mãe! Mãe perfeita desde o primeiro instante de seu ser concebido sem mácula. Mãe Santíssima de tal maneira que, em cada momento de sua existência, não cessou de corresponder à graça; apenas cresceu, cresceu e cresceu até alcançar inimaginável elevação de virtude. Essa Mãe, d’Ele e nossa, tem misericórdia do filho mais esfarrapado, torto, desarranjado; e quanto mais desarranjado, torto e esfarrapado, maior sua compaixão materna. ‘Minha Mãe: aqui estou eu. Tende pena de mim hoje, agora, como sempre tivestes e, espero, sempre tereis. Purificai-me, ordenai-me, tomai minha alma cada vez mais semelhante à vossa e à d’Aquele que, como a mim, é dada a indizível felicidade de Vos ter por Mãe!”.18
A Jesus, cujo Natal celebramos nesta Oitava, dirigimos nosso olhar cheio de gratidão e imploramos que cheguem à sua plenitude as graças por Ele trazidas ao mundo ao nascer em Belém: “Senhor, Vós quereis reinar sobre a Terra de uma forma solene, majestosa e, ao mesmo tempo, maternal. Por isso, Vós entregais o vosso Reino à vossa Mãe Santíssima. Nós Vos pedimos, Senhor, que a misericórdia d’Ela triunfe o quanto antes! Neste momento, nosso coração se volta a Ela, cheio da certeza de que sua misericórdia e bondade para cada um de nós é superior à de qualquer mãe. Ela está disposta a nos abraçar, a nos acolher em seu colo e nos proteger, quer seja contra a maldade dos homens, quer seja contra a maldade vinda do inferno. Enfim, Ela está disposta a fazer de tudo por nós! Senhor, não A retenhais! Deixai que a misericórdia d’Ela nos abrace, pois só assim os horrores do mundo contemporâneo não atingirão nossa alma. Nós Vos pedimos, Senhor, que Ela desdobre sobre os vossos filhos toda a sua bondade maternal e misericordiosa, para que o reino do afeto, o reino do carinho materno, o reino da bondade insuperável de Maria Santíssima se estabeleça na Terra. E que Ela apareça sorridente na cerimônia de inauguração dessa nova era histórica, dizendo a seus filhos: ‘Por fim, o meu Imaculado Coração triunfou”.
1) Os desvios na devoção a Nossa Senhora nos primeiros tempos ocasionaram inclusive cerimoniais de culto, como comenta Alastruey: “segundo o testemunho de Santo Epifânio, os coliridianos, na Arábia, veneravam a Virgem como deusa e ofereciam, com ritos idolátricos, pequenos pães ou tortas em sua honra. Esta seita era composta quase exclusivamente por mulheres, e a elas estavam reservados os ofícios sacerdotais. Entre os montanistas orientais, os chamados marianistas e filo-marianistas adoravam Maria como deusa” (ALASTRUEY, Gregorio. Tratado de la Virgen Santísima. 4.ed. Madrid: BAC, 1956, p.841).
2) Cf. ROYO MARIN, OP, Antonio. La Virgen María. Madrid: BAC, 1968, p.100-102.
3) Cf. COLUNGA, OP, Alberto; GARCIA CORDERO, OP, Maximiliano. Biblia Comentada. Pentateuco. Madrid: BAC, 1960, v.1, p.787-788.
4) A respeito da predestinação eterna do Redentor e sua Mãe Santíssima, ensina o Papa João Paulo II na Encíclica Redemptoris Mater: “No mistério de Cristo, Maria está presente já ‘antes da criação do mundo’, como Aquela a quem o Pai ‘escolheu’ para Mãe do seu Filho na Encarnação — e, conjuntamente ao Pai, escolheu-A também o Filho, confiando-A eternamente ao Espírito de santidade. Maria está unida a Cristo, de um modo absolutamente especial e excepcional; e é amada neste ‘Filho muito amado’ desde toda a eternidade” (JOAO PAULO II. Redemptoris Mater, n.8).
5) ROSCHINI, OSM, Gabriel. Instruções Marianas. São Paulo: Paulinas, 1960, p.25.
6) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.25, a.6, ad 4.
7) SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. L’Amour de la Sagesse Éternelle, n.107. In: OEuvres Complètes. Paris: Du Seuil, 1966, p.151.
8) SANTO ANSELMO. De conceptu virginali et originali peccato, c.XVIII. In: Obras Completas, Madrid: BAC, 1953, v.11, p.47.
9) NICOLAS, Auguste. La Vierge Marie et le plan divin. 2.ed. Paris: Auguste Vaton, 1856, t.I, p.376.
10) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., III, q.35, a.4.
11) Dz 252.
12) PHILIPON, OP, Marie-Michel. Los dones del Espíritu Santo. Barcelona: Balmes, 1966, p.370.
13) Cf. SAO LUIS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge, n.19. In: OEuvres Complètes, op. cit., p.497.
14) BARTOLOMEU DE CAPUA. Depoimento no Processo de Canonização, apud AMEAL, João. São Tomás de Aquino. Iniciação ao estudo da sua figura e da sua obra, Porto: Tavares Martins, 1961, p.145.
15) Cf. sAo fÁs DE AQUINO. Suma contra os gentios. LIII, c.24, n.6.
16) Cf. SAO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.70, a.4.
17) Cf. SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT, Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge, op. cit., n.202, p.620.
18) CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. A mesma Mãe. In: Dr Plinio. São Paulo. Ano IX. N.96 (Mar., 2006); p.36.


sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

EVANGELHO FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA DE JESUS, MARIA E JOSÉ - ANO A

COMENTÁRIOS AO EVANGELHO FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA - Mt 2, 13-15. 19-23
Depois que os Magos partiram, o Anjo do Senhor apareceu em sonho a José e lhe disse: “Levanta-te, pega o Menino e sua Mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise! Porque Herodes vai procurar o Menino para matá-Lo”.
14 José levantou-se de noite, pegou o Menino e sua Mãe, e partiu para o Egito.
15 Ali ficou até a morte de Herodes, para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: “Do Egito chamei o meu Filho”.
19 Quando Herodes morreu, o Anjo do Senhor apareceu em sonho a José, no Egito 20 e lhe disse: “Levanta-te, pega o Menino e sua Mãe, e volta para a terra de Israel; pois aqueles que procuravam matar o Menino já estão mortos”. .
21 José levantou-se, pegou o Menino e sua Mãe, e entrou na terra de Israel. 22 Mas quando soube que Arquelau reinava na Judeia, no lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Por isso, depois de receber um aviso em sonho, José retirou-se para a região da Galileia, 23 e foi morar numa cidade chamada Nazaré. Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelos profetas: “Ele será chamado Nazareno” (Mt 2, 13-15. 19-23).
O verdadeiro centro da vida familiar
A docilidade dos membros da Sagrada Família à voz de Deus nos ensina que a vida familiar deve ter como objetivo a procura e o cultivo da santidade.
DEUS ESCOLHEU UM LAR
A Santa Igreja reserva o domingo posterior ao Natal para cultuar e festejar a Sagrada Família, convidando-nos a refletir sobre o valor e o verdadeiro sentido da instituição familiar. Ela é a célula-mãe, o fundamento da sociedade, e se hoje assistimos a uma tremenda crise moral na humanidade, isso se deve em certa medida à desagregação da família. Abalada esta, o resto da sociedade não se sustenta.
Lemos no Gênesis, que depois de criar o homem e a mulher, Deus abençoou-os e lhes disse: “Frutificai e multiplicai-vos” (1, 28). Era a primeira família, formada por mãos divinas. Esta união é tão adequada à natureza humana que no Antigo Testamento não se compreendia o celibato, pois quase equivalia “a cometer um homicídio, a diminuir no mundo a semelhança divina”,’ salvo no caso de vocações muito especiais como, por exemplo, a de Santo Elias. Não ter filhos, morrer sem descendência era considerado um sinal de castigo e de maldição. Já no Novo Testamento, Nosso Senhor Jesus Cristo inaugurou um novo estado de vida, o celibato religioso, do qual Ele próprio é o sublime arquétipo. Também São João Batista, o varão que fechava o Antigo Testamento e apontava para o Novo, não se casou. Uma vez fundada a Igreja, era preciso haver uma noção mais clara e sólida da religiosidade da família, tendo representado um enorme benefício a existência, ao lado desta, de quem se consagrasse inteiramente a Deus pela prática da castidade per feita. Deste modo se coíbe a tendência que tem o homem de satisfazer seu egoísmo, de se voltar só para o que é material e sensível, esquecendo-se de Deus.
A finalidade da família
Como o desígnio de Deus para a generalidade das pessoas é que o homem se una à mulher para constituírem um lar, a vocação ao celibato é uma exceção aos padrões da natureza. No entanto, por ocasião da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, a família adquire caráter sobrenatural pela elevação da união matrimonial, contrato natural, à categoria de Sacramento, simbolizado na misteriosa e indissolúvel união entre Cristo e sua Igreja. Isto contraria a ideia errada, em voga na atualidade, de que a família não tem um objetivo religioso, mas apenas social ou afetivo.
Bem outro é, todavia, o conceito expresso por Nosso Senhor: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo” (Mt 6, 33).
Quando no seio da família se procura o Reino de Deus, ou seja, a santidade, tendo como modelo supremo Jesus, Maria e José, todo o resto — dinheiro, comida, lar, etc. — vai ser concedido por acréscimo. E mister trabalhar para ganhar o pão com o suor do rosto (cf. Gn 3, 19), mas não é essa a finalidade principal da família. Ela existe para educar os filhos na sabedoria e encaminhá-los para o Céu, pois estamos nesta Terra de passagem, preparando-os, portanto, para enfrentar as tribulações deste vale de lágrimas com vistas à eternidade. Por tal perspectiva podemos considerar melhor a Liturgia da festa de hoje, que insiste nestes pontos em cada uma de suas leituras.
Como deve ser a vida familiar santa
A primeira, do Livro do Eclesiástico (3, 3-7.14-17a), trata das  obrigações da vida familiar, em particular do prêmio reservado aos que respeitam o pai e a mãe. Um dos versículos finais desta leitura indica bem o quanto é agradável a Deus o amor filial: “a caridade feita a teu pai não será esquecida” (Edo 3, 15).
Todos esses princípios podem ser sintetizados no refrão do Salmo Responsorial (cf. Sl 127, 1): “Felizes os que temem o Senhor e trilham os seus caminhos!”. O temor de Deus é um dom do Espírito Santo. O desejo de fugir do pecado por medo de ser repreendido e castigado, de ter de padecer no Purgatório ou ser condenado ao inferno, pertence ao temor servil, primeiro grau do temor de Deus. Mais alto e elevado, próprio aos amigos de Deus, é o temor filial de ofender a Deus por ser Ele quem é, o Ser absoluto e perfeitíssimo que nos criou, nos sustenta, nos remiu!2 Este Salmo nos põe no contexto da relação familiar, que precisa ser pervadida por esse temor de Deus: pai, mãe e filhos jamais quererão ofendê-Lo! Esta é a família bem constituída, imitadora da Sagrada Família.
A segunda leitura, extraída da Epístola de São Paulo aos Colossenses (3, 12-21), insiste no amor mútuo — conceito atualmente tão deturpado — como uma novidade trazida por Nosso Senhor Jesus Cristo. Com efeito, no Antigo Testamento valia a lei de talião: olho por olho, dente por dente (cf. Ex 21, 24), a qual ainda era considerada benigna para aqueles tempos em que o ódio era a regra e não havia limite moral para a vingança.
São Paulo diz: “Vós sois amados por Deus, sois os seus santos eleitos. Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente se um tiver queixa contra o outro. Como o Senhor nos perdoou, assim perdoai também. Mas, sobretudo, amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição” (Col 3, 12-14). Dentro do convívio familiar deve existir um amor intenso, nem sentimental nem romântico, de corrente do amor a Deus e visando antes de tudo a santificação do outro cônjuge e de toda a familia.
É impossível — ao contrário da ideia divulgada por certos filmes ou novelas — viver sem dificuldades. “Militia est vita hominis super terram — A vida do homem sobre a Terra é uma luta” (Jó 7, 1). Eis a verdadeira chave da felicidade familiar: o respeito recíproco entre os esposos. Nunca discutirem ou se desentenderem, sempre dispostos a perdoar as fraquezas mútuas, a suportar as diferenças temperamentais, adaptando-se às preferências do outro. Eloquente exemplo da abnegação que deve imperar em cada lar encontramos no Evangelho escolhido pela Igreja para a festa da Sagrada Família.
OBEDIÊNCIA VOZ DE DEUS
Depois que os Magos partiram...
Esta passagem enquadra-se nas circunstâncias que cercaram a visita dos Reis Magos a Herodes. São três os Herodes mencionados na Sagrada Escritura.3 O primeiro foi Herodes, cognominado o Grande — também chamado Ascalonita —, aludido neste Evangelho, em cujo reinado nasceu o Menino Jesus e os Santos Inocentes foram martirizados (cf. Mt 2, 16). 0 segundo foi Herodes Antipas, duramente increpado por São João Batista por sua relação adulterina com Herodíades. Por instigação dela, este tirano mandou decapitar o Precursor (cf. Mt 14, 3-10). Foi este Herodes quem interrogou Nosso Senhor no processo que culminou com sua condenação à morte (cf. Lc 23, 7-11). 0 terceiro foi Herodes Agripa, que, depois da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo aos Céus, matou São Tiago, o Menor, e prendeu São Pedro (cf. At 12, 1-3).
Os Magos, vindos do Oriente, estavam desejosos de encontrar o Salvador prometido e perguntaram a Herodes — o Grande —, com certa ingenuidade, onde estava o Rei dos judeus recém-nascido (cf. Mt 2, 2). 0 tirano tremeu ao ouvir isto, tomado de pavor, porque essa criança que acabava de nascer poderia vir a tirar-lhe o trono. Ele, um usurpador idumeu, portanto sem prerrogativa alguma para ser rei dos judeus, apoderara-se do governo por meio de manobras políticas que lhe tinham obtido o apoio de Roma.
O que fez, então, Herodes? Enganou os Magos, fingindo-se uma pessoa piedosa que, como eles, esperava a vinda do Messias, e pediu-lhes que fossem procurar o Menino para, depois, também ir adorá-Lo. Na realidade, seu intuito era aplicar o método mais usual daquela época para neutralizar opositores, e que ele empregou contra seus cunhados, seu tio, sua esposa, sua sogra, e até contra os seus próprios filhos: o assassinato. Como transcorressem os dias e os Magos não retornassem a Jerusalém conforme combinado — já que haviam sido avisados pëio Anjo em sonho das más intenções de Herodes —, as suspeitas de conspiração aumentaram, levando o infame rei a cometer mais uma atrocidade para tentar pôr fim à vida do Menino. Baseando-se no oráculo de Miqueias sobre o nascimento do Messias em Belém (cf. Mq 5, 1-2), que os príncipes dos sacerdotes lhe tinham dado a conhecer, determinou exterminar todas as crianças dessa cidade e das redondezas, de idade inferior a dois anos.4
Estamos diante de uma situação singular: o Príncipe da Paz, o Esperado das Nações apenas nasce e já suscita contra Si o ódio do demônio, que incute um pânico sem fundamento em Herodes, instigando-o a matá-Lo.
Deus respeita as autoridades legítimas
13b ...o Anjo do Senhor apareceu em sonho a José...
Por que o Anjo apareceu a São José e não a Maria Santíssima? Pois quem tinha uma relação direta com o Menino Deus era sua Mãe, enquanto São José era tão somente o pai adotivo, e, do ponto de vista sobrenatural, o menor na Sagrada Familia. Entretanto, como chefe da casa, a ele cabiam as decisões, e por tal motivo foi o escolhido para receber o aviso angélico.
Isso permite uma aplicação para a nossa vida: o respeito à hierarquia redunda em benefício para quem o leva a sério, é a melhor forma de progredir espiritualmente e constitui o eixo da harmonia familiar, assim como de qualquer comunidade religiosa ou instituição temporal. Pelo contrário, quem se revolta contra o superior legítimo provoca retração da graça de Deus e tem dificuldade em perseverar no caminho da virtude.
A partir do momento em que alguém — pessoa concebida no pecado original, por vezes manifestando defeitos — foi encarregado de governar, é necessário obedecer-lhe. Esta obrigação só se torna inválida quando se refere à prática do pecado, pois nenhuma autoridade, por mais alta que seja, tem o poder de revogar a Lei de Deus.
Deve-se obedecer aos avisos divinos com prontidão
13c ...e lhe disse: “Levanta-te, pega o Menino e sua Mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise! Porque Herodes vai procurar o Menino para matá-Lo”. 4a José levantou-se de noite, pegou o Menino e sua Mãe...
É muito provável que o episódio narrado tenha se dado vários meses depois do nascimento do Menino Jesus, portanto não mais na Gruta — embora os Presépios nela representem a visita dos Reis Magos —, mas já numa casa em Belém,5 como consta no próprio Evangelho de São Mateus: “A aparição daquela estrela os encheu de profunda alegria. Entrando na casa, acharam o Menino com Maria, sua Mãe” (2, 10-11).
As palavras do Anjo são muito precisas. Ele podia ter dito: “Pega o Menino e tua esposa”. Não obstante, como São José não é o pai, “não chama seus nem a mulher nem o Menino”,6 destacando seu papel de guardião de ambos, missão aceita com humildade pelo Santo Patriarca. Flexível à vontade de Deus, São José com todo o respeito despertou Maria de um sono angélico para empreenderem logo a viagem, pois o texto do Evangelho diz que “levantou-se de noite”. Digna de nota é sua prontidão em atender à indicação do Anjo, fato do qual podemos haurir uma preciosa lição: enquanto os subalternos — neste caso Maria e Jesus em relação a São José, cabeça da família — devem obediência à autoridade, esta tem de ser muito dócil à voz da graça. Um superior nunca deve dizer “eu não sei o que fazer”, porque Deus não abandona a autoridade legítima que Ele mesmo constituiu, mas a assiste de maneira especial no desempenho da sua função. Como todo poder vem do alto (cf. Jo 19, 11), também do Céu lhe serão concedidas a inspiração e o auxílio sobrenatural para conduzir à sua finalidade os subordinados.
Se São José se esquivasse à ordem do Anjo com alguma desculpa, a História teria sido outra...
14b  partiu para o Egito.
A glosa e a imaginação daqueles que escreveram sobre esta viagem a apresentam com um colorido maravilhoso. São árvores que surgem de repente para fazer sombra a Nossa Senhora e ao Menino, palmeiras que se curvam ao passar a Sagrada Família, campos de trigo que crescem no caminho para iludir os soldados de Herodes na perseguição, ídolos que desabam… nõa nos é dado a conhecer a veracidade desses possíveis prodIgios, a despeito dos quais a viagem foi penosíssima.
São João Crisóstomo discerne neste episódio a mão misericordiosa de Deus levando um “prelúdio de boas esperanças”7 a toda a Terra, até mesmo às nações mais impiedosas, e São Leão Magno entrevê um belo significado: “ele retornava assim ao antigo berço do povo hebreu, e aí exercia a autoridade do verdadeiro José, usando de um poder e de uma previdência maior que a dele, pois vinha libertar os corações dos egípcios desta fome, mais terrível que toda penúria de que padeciam pela ausência da verdade”.8 De fato, tendo outrora castigado o Egito para libertar Israel das mãos do Faraó, na sua infinita compaixão quis Deus contrabalançar o furor de sua cólera dando a esta nação, durante algum tempo, o dom imenso da presença de Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora e São José para santificá-la e lhe dar uma compensação sobrenatural pelos castigos recebidos no passado.
A desordem gerada pelo pecado já é um castigo
15 Ali ficou até a morte de Herodes. para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: “Do Egito chamei o meu Filho”. 19a Quando Herodes morreu...
Há quem diga que Deus não castiga. O certo é que a desordem provocada na natureza humana pelo pecado já é uma primeira punição pela violação da ordem. No caso de Herodes, como qualificar as circunstâncias trágicas de sua morte? Castigo de Deus ou fruto corrompido de uma vida criminosa? De qualquer forma, é proveitoso conhecer alguns detalhes de seus últimos dias, pois permitem uma boa reflexão sobre as consequências do pecado.
Os degraus de seu trono foram cimentados com o sangue e a injustiça. Para cingir a coroa, conquistou de assalto a Cidade Santa após um prolongado cerco, ocasionando, segundo o historiador Flávio Josefo,9 uma tremenda carnificina que não poupou anciãos, mulheres e crianças. Uma vez consolidado o poder, não faltaram resistências ao seu governo, que ele soube vencer através de artimanhas e novas infâmias, granjeando o ódio do povo e atraindo sobre si a maldição de todos os judeus zelosos da Lei. Vivia obcecado pelo receio de que alguma conspiração palaciana pusesse fim a suas ambições, e a menor oposição a seu domínio era punida com a morte, da qual nem sequer seus familiares puderam escapar. Conta-se que o imperador Augusto, horrorizado com tanta crueldade, chegou a comentar que preferiria ser um porco de Herodes a ser seu filho, pois como o tirano não se alimentava deste animal ele estaria tranquilo, enquanto se fosse filho corria o risco de ser executado.
A enfermidade que o levou à morte provocou-lhe dores atrozes, violentas convulsões e uma terrível gangrena em suas entranhas. Os vermes que o devoravam eram visíveis e o odor exalado insuportável.10
Estes terríveis males que lhe corroeram a carne, ainda antes de morrer, bem simbolizam sua consciência, a qual não lhe deu sossego até o último instante e fez de sua vida um inferno. Herodes foi um homem que alcançou tudo quanto seus delírios de cobiça lhe exigiam: poder, honras, riquezas, prazeres. Não teve, porém, o afeto sincero de ninguém, nem mesmo da própria família, que ele submergiu em sangue. Não conheceu a paz interior, nem gozou do favor inestimável das bênçãos do Céu. Seus desregramentos afastaram-no da felicidade e da alegria concedidas a quem segue a Lei de Deus.
Nunca nos apeguemos à nossa própria situação
9b ...o Anjo do Senhor apareceu em sonho a José, no Egito, 20e lhe disse: “Levanta-te, pega o Menino e sua Mãe, e volta para a terra de Israel; pois aqueles que procuravam matar o Menino já estão mortos”. 21 José levantou-se, pegou o Menino e sua Mãe, e entrou na terra de Israel.
A flexibilidade incondicional de São José à inspiração divina, mais uma vez, sobressai. O que representava de esforço e de sacrifício sair de sua terra de origem e ir para um país estrangeiro com língua e costumes diferentes, naquele tempo, é incalculável. Como obter meios de subsistência a fim de manter a Sagrada Família? Nada disso nos diz o Evangelho, mas é fácil conjecturar. Quando eles saíram de Belém, o fizeram às pressas, para se pôr a salvo da perseguição de Herodes, sem tempo de preparar convenientemente tão longa viagem.
No Egito, fora da jurisdição de Herodes, era-lhes permitido viver tranquilos e quiçá José tenha se firmado ali com a ajuda da comunidade judaica, então florescente. Várias localidades disputam a honra de ter acolhido a Sagrada Família: no Cairo, a igreja de Abu Sargha é considerada o lugar da casa de Jesus, Maria e José; outras tradições apontam para o mosteiro de Koskâm ou para a cidade de Hermópolis.11
Ao receber a ordem de voltar para Israel, São José poderia alegar a situação que já tinha atingido no Egito, onde fora tão difícil se estabelecer no início, e pedir o adiamento do retorno. Mas ele não se queixa nem discute com o Anjo: levanta-se e parte sem delongas para a terra natal. Assim deve ser um superior quando ouve a voz da graça: à imitação de São José, obedecer de imediato com toda segurança.
A sabedoria dos planos da providência
22 Mas, quando soube que Arquelau reinava na Judela, no lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Por isso, depois de receber um aviso em sonho, José retirou-se para a região da Galileia, 23e foi morar numa cidade chamada Nazaré. Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelos profetas: “Ele será chamado Nazareno”.
Ao chegar a Israel, São José soube que o filho de Herodes subira ao trono da Judeia e teve receio de que algum mal pudesse atingir o Menino. Com efeito, embora Arquelau não conseguisse superar seu pai em crueldade, empenhou-se em seguir-lhe os passos, deixando também um rastro de sangue em seu curto reinado. Por isso José, inspirado em sonho, partiu para a Galileia, lugar sob outra jurisdição.
Vemos neste fato a mão de Deus, que designara aquela terra para acolher os primórdios da missão redentora de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tais são os caminhos da nossa existência, atravessados por imprevistos que nos mudam os planos: ora Deus pede uma coisa, ora pede outra. Entretanto, em tudo o que acontece Ele nos dirige com sabedoria e afeto paternal.
SAGRADA FAMÍLIA, EXEMPLO NAS DIFICULDADES DA VIDA
Eis o aspecto maravilhoso da família quando se desenvolve em torno de um eixo: a Lei de Deus, o próprio Deus. A Igreja nos propõe nesta festa litúrgica o inigualável exemplo da Sagrada Família: São José, obediente, de nada se queixa; Nossa Senhora toma os reveses com inteira cordura e submissão; e o Menino Jesus Se deixa conduzir e governar por ambos, sendo Ele o Criador do Universo. Nós também devemos, portanto, ser flexíveis à vontade de Deus e estar dispostos a aceitar com doçura de coração, com resignação plena e total, os sofrimentos que a Providência exigir ao longo de nossa vida. Esta atitude diante da cruz é a raiz da verdadeira felicidade, bem-estar e harmonia familiar, e atrai sobre cada um de nós graças especialíssimas que nos restauram as almas, curando-as das misérias e firmando-as rumo ao Céu. Peçamos à Sagrada Família que, por sua intercessão, floresça nas famílias de toda a Terra a sólida determinação de abraçar sempre mais a via da santidade, da perfeição e da virtude, buscando em primeiro lugar o Reino de Deus e de Maria, na certeza de que, em compensação, o resto virá por acréscimo.
 1) BONSIRVEN, Si, Joseph. Le judaïsme palestinien au temps de Jésus-Christ. 2.ed. Paris: Gabriel Beauchesne, 1935, t.II, p.207.
2) Cf. PHILIPON, OP, Marie-Miche!. Los dones dei Espíritu Santo. Barcelona: Balmes, 1966, p.332-335.

3) Cf. SCHUSTER, Ignacio; HOLZAMMER, Juan B. Historia Bíblica. Nuevo Testamento. Barcelona: Litúrgica Española, 1935, t.II, p.74 77; TRICOT, Alphonse Elie. Le monde juif au temps de Notre-Seigneur. In: ROBERT, André; TRICOT, Alphonse Elie (Dir.). Initiation biblique. Introduction à l’étude des Saintes Ecritures. 2.ed. Paris: Desclée, 1948, p.693-700.
4) Para outros comentários a respeito deste tema, ver: CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Diante do Rei, os bons reis e o mau. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.85 (Jan., 2009); p.10-19; Comentário ao Evangelho da Solenidade da Epifania do Senhor — Anos A, B e C, respectivamente nos Volumes I, III e V desta coleção.
5) Cf. FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Infancia y Bautismo. Madrid: Rialp, 2000, v.1, p.187-l88; FERNANDEZ TRUYOLS, SJ, Andrés. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. 2.ed. Madrid: BAC, 1954, p.60.
6) SAO JOAO CRISOSTOMO. Homilía VIII, n.2. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (1-45). 2.ed. Madrid: BAC, 2007, v.1, p.150.
7) Idem, p. 149.
8) SAO LEAO MAGNO. In Epiphani Solemnitate. Sermo III, hom.14 [XXXIII], n.4. In: Sermons. 2.ed. Paris: Du Cerf, 1964, v.1, p.233.
9) Cf. FLAVIO JOSEFO.Antiguidades judaicas. L.XIV c.28, n.623.
10) Cf. Idem, LXVII, c.8, 11.739.
11) Cf. TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, vV, p.42.



domingo, 22 de dezembro de 2013

EVANGELHO DO NATAL Jo 1, 1-18

COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE NATAL - Jo 1, 1-18 - ANO A - 2013
João Scognamiglio Clá Dias
EVANGELHO DO NATAL - ANO A - 2013 -  Jo 1, 1-18
No princípio existia o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. 2 Estava no princípio com Deus. 3 Todas as coisas foram feitas por Ele; e sem Ele nada foi feito. 4 N’Ele estava a vida, e a vida era a luz dos homens; 5 e a luz resplandeceu nas trevas, mas as trevas não O receberam. 6
Apareceu um homem enviado por Deus que se chamava João. 7 Veio como testemunha para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por meio dele. 8 Não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz. 9 O Verbo era a luz verdadeira, que vindo a este mundo ilumina todo o homem. 10 Estava no mundo, e o mundo foi feito por Ele, mas o mundo não O conheceu. 11 Veio para o que era seu, e os seus não O receberam. 12 Mas a todos os que O receberam, àqueles que crêem no seu nome, deu poder de se tornarem filhos de Deus; 13 eles que não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.
14E o Verbo fez-se carne, e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória como de Filho Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. 15 João dá testemunho d’Ele e clama: “Este era Aquele de Quem eu disse: O que há de vir depois de mim é mais do que eu, porque existia antes de mim”. 16 Todos nós participamos da sua plenitude, e recebemos graça sobre graça; 17 porque a Lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade foram trazidas por Jesus Cristo. 18 Ninguém jamais viu a Deus; o Unigênito de Deus, que está no seio do Pai, Ele mesmo é que O deu a conhecer (Jo 1, 1-18).
REFLEXÃO
ETERNIDADE FELIZ
É uma lei da História, Deus sempre encontrar uma solução superior aos seus planos anteriores, ao serem estes frustrados pela incorrespondência das criaturas. Como contemplar o Natal sob o prisma dessa constância do proceder divino? Acompanhemos a reflexão da Liturgia de hoje.
Frustrado o plano de Deus?
As autênticas obras de arte levam seus autores a com elas se encantarem logo após o último retoque. O grande Michelangelo foi um exemplo pitoresco ao contemplar seu famoso “Moisés”. A escultura se apresentou diante de seus olhos com tanta realidade que arrancou de seu italianíssimo coração a célebre exclamação: “Parla! Perchè non parla?” Sim, só faltava falar aquela bela figura lavrada em mármore. Mas, para tal, era preciso uma arte ainda mais requintada, a de poder transmitir-lhe a própria vida. Todavia, Michelangelo nada pôde fazer nesse sentido, a não ser, cheio de emoção, desferir um golpe de martelo no joelho da estátua, produzindo-lhe a marca que ainda hoje pode ser vista.
Esse episódio nos faz recordar outro semelhante e mais antigo, o do insuperável e perfeitíssimo boneco de barro. Modelado com precisão absoluta, seu Autor se encantou ao contemplá-lo e, sendo infinitamente mais capaz do que Michelangelo, com um simples sopro, infundiu-lhe a vida humana: “O Senhor formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gen 2, 7). E se isso não bastasse para consagrar a onipotência de Deus, determinou Ele também a criação de Eva: “Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem” (Gen 2, 21-22).
Assim, criou-os na graça, além de infundir-lhes especiais dons e virtudes.
Mas nossos primeiros pais usaram mal do livre-arbítrio, desobedeceram. Por isso perderam todos os privilégios sobrenaturais, foram expulsos do Paraíso e, com seus descendentes, condenados a retornar ao pó do qual haviam se originado: “Comerás o pão com o suor de teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de tornar” (Gen 3, 19).
À primeira vista pareceria estar irreversivelmente frustrado o plano de Deus, sua obra marcada pela feiúra. Como reviver aquela alegria diária, “do Senhor Deus que passeava no jardim à hora da brisa da tarde” (Gen 3, 8) com aquele varão, o fruto de sua onipotência? Escolher um barro melhor e elaborar um outro ser mais inclinado à obediência? Recomeçar da estaca zero, no fundo, seria assumir o fracasso. Indispensável era encontrar uma solução superior, bela e muito mais eficaz do que o próprio plano anterior. O que para os homens é impossível, para Deus é possível, conforme afirma Mateus (vv.19, 26).
DIVINA SOLUÇÃO PARA UM PROBLEMA INSOLÚVEL
Aproximemo-nos da manjedoura na gruta em Belém e contemplemos um Menino reluzente de vitalidade, sabedoria e graça. A diplomacia divina não podia haver elaborado melhor forma para remediar todos os males trazidos pelo pecado. Um Homem-Deus...
Esse é o fundo de quadro de grandiosidade do Evangelho de hoje:
“A todos que O receberam, àqueles que crêem no seu nome, deu poder de se tornarem filhos de Deus; eles não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (vv. 12-13).
Excelente tema para se considerar nesta festa de Natal: um Menino adorável, Deus e Homem verdadeiro, com todas as fragilidades de uma criatura, porém unida hipostaticamente ao Onipotente.
Aí está o Menino Redentor que naquela Noite Feliz nos abriu não só os braços mas — e sobretudo — a possibilidade de termos uma participação em sua divina natureza. Quão extraordinário é para nós esse dom! Apliquemo-nos em compreendê-lo melhor.
A Redenção nos tornou filhos de Deus
Estamos habituados a conferir o título de filho de Deus a qualquer pessoa a ponto de constituir, talvez, uma certa ofensa em negá-lo a quem quer que seja. Mas esta atitude não passa de um profundo equívoco, pois os não-batizados são puras criaturas, e não filhos de Deus. Da mesma forma que não posso afirmar serem os móveis filhos do marceneiro que os produziu, pois dele não receberam a natureza humana, assim também não se pode dar o título de filho de Deus a uma pessoa que não participa da natureza divina.
Pois, para ser filho, necessita-se ter a mesma natureza do pai; por isso os filhos dos coelhos chamam-se coelhos, e os dos homens são homens. E os filhos de Deus devem ser “deuses” como Ele o é.
Ademais, as capacidades de toda criatura sempre estão em proporção de sua respectiva natureza. Por exemplo, o colibri tem as aptidões que lhe são próprias, e ignorância consumada seria dar-lhe para resolver um problema de álgebra ou de simples aritmética. Assim também, são puramente humanas as forças do homem, nunca divinas.
Ora, o prêmio deve estar proporcionado aos predicados de quem o mereceu. Jamais seria adequado conceder a um corcel, por sua agilidade e capacidade físicas, um prêmio intelectual, pois, não só ele não o entenderia, como seria um verdadeiro absurdo. Da mesma forma, todos os prêmios conquistáveis pelo homem, devido à sua natureza própria, nunca poderiam ser divinos, são sempre puramente humanos.
Esta é a razão pela qual o Céu não se obtém pelos esforços, nem sequer da natureza angélica. Por mais que nos fosse dado praticar todos os Mandamentos da Lei de Deus, jamais poderíamos, por nós mesmos, entrar no Céu, pois, a essência deste consiste em ver Deus face a face, e só as três Pessoas da Santíssima Trindade possuem esse privilégio desde toda eternidade e por toda eternidade.
É justamente no Presépio que se encontra representado o retorno da vida sobrenatural para nós. Ali está Quem não só nos abriu as portas do Céu, mas também nos elevou à categoria de filhos de Deus.

Deu início à era da graça
Não há no vocabulário humano palavras para exaltar suficientemente as incontáveis e preciosas maravilhas a nós concedidas naquela Noite Feliz.
Na ordem dos seres criados podemos encontrar certas analogias ilustrativas, para melhor nos fazer compreender essa infusão divina de que ora tratamos. Uma barra de ferro submetida numa forja a altas temperaturas, não tardará em tornar-se incandescente. Segundo comenta São Tomás de Aquino, a barra, sem deixar de ser ferro, adquirirá todas as propriedades do fogo; exemplo, portanto, de como, pela graça, Deus diviniza nossas almas. São Boaventura serviu-se da figura de um vitral iluminado pelo sol para nos explicar a mesma realidade sobrenatural. O que é o vitral sem os raios de luz — pergunta ele — e o que somos nós sem a graça?
Outros autores se basearam em exemplos oriundos do reino vegetal para nos tornar acessível uma certa idéia sobre esse tão rico fenômeno sobrenatural. Assim, enxertando-se um ramo de laranjeira num pé de romã, as laranjas nascerão com todas as suas características próprias e, ademais, terão a coloração e o sabor da romã. Também Deus, por meio de um insuperável enxerto da graça em nós, eleva-nos a participar de sua natureza divina.
Esse inefável milagre se inicia no Presépio, em Belém. É o mistério da Redenção: nossos pecados podem ser perdoados e, isentos de toda culpa, somos reintegrados à ordem sobrenatural.
Amou-nos como irmãos
14E o Verbo fez-se carne, e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória como de Filho Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. 15 João dá testemunho d’Ele e clama: “Este era Aquele de Quem eu disse: O que há de vir depois de mim é mais do que eu, porque existia antes de mim”. 16 Todos nós participamos da sua plenitude, e recebemos graça sobre graça; 17 porque a Lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade foram trazidas por Jesus Cristo.
Fixemos nosso olhar nesse Menino que se encontra reclinado na manjedoura de Belém e contemplemos Aquele no qual “foram criadas todas as coisas (...) tudo foi criado por Ele e para Ele” (Col 1, 16).
Essas afirmações contidas na Revelação pela lavra de São Paulo Apóstolo, pedem um aprofundamento: “Por Ele” quer dizer que o Menino Deus foi o Criador. “Para Ele”, ou seja, tudo o que existe — e em especial os seres inteligentes — têm a obrigação de glorificá-Lo. “N’Ele”, significa que Ele serviu de modelo para a nossa criação.
“Noite feliz, noite feliz! O Senhor, Deus de Amor, pobrezinho nasceu em Belém. Eis, na lapa, Jesus, nosso Bem. Dorme em paz, ó Jesus”. Serão as palavras que ouviremos repetir-se neste Natal, na evocativa melodia do “Stille Nacht”, um tocante raio de paz em meio aos dramas e preocupações dos dias atuais.
“Deus de amor”, Ele sempre o foi e jamais deixará de sê-lo. Esse amor é eterno como o próprio Deus. “Amo-te com amor eterno” (Jr 31, 3). Gozando de uma felicidade perfeita e infinita, não tinha Ele necessidade do homem nem dos Anjos. O amor O levou a tirar do nada inúmeras criaturas, concedendo-lhes a possibilidade de participarem de sua Vida. Foi por essa razão que “o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (v. 14), mas a Encarnação foi apenas o primeiro passo em sua via de dileção por nós. Ele se fará nosso companheiro de todos os dias, o amigo de nossa existência. Esse amor, sendo pertinaz, não se satisfez e desejou elevar-nos à categoria de sermos seus irmãos.
E que fez Ele para tal?
Homem de nosso sangue e nossa raça
Deus não moldou outro boneco de barro como para o primeiro Adão. Se assim tivesse procedido, Ele não teria o nosso sangue, não pertenceria à nossa família, não seria nosso irmão. Apesar de sua geração não ter se dado de forma idêntica à nossa, entretanto Ele foi concebido por uma mulher, e dela nasceu. Mulher bem-aventurada entre todas, santa e imaculada, única e cheia de graça, virgem e mãe, mas enfim, filha de Adão. Por isso Jesus, além de verdadeiro Filho de Deus, é também Filho do Homem, de nosso sangue e de nossa raça. Esta é a razão pela qual, no decurso de sua vida, Ele se fez reconhecer por estes dois títulos, pois, se pelo primeiro deles Jesus se identificava com o próprio Deus, pelo segundo, aproximava seu Sagrado Coração do nosso.
Porém, sendo Ele “Deus verdadeiro, de Deus verdadeiro, gerado e não criado, consubstancial ao Pai”, pareceria mais segundo a lógica escolher um corpo glorioso proporcionado à sua alma que sempre esteve no pleno gozo da visão beatífica. Esse corpo deveria estar isento das dores, sofrimentos e contingências tão comuns a nós, pobres mortais, filhos de Eva. Seria mais compreensível que o esplendor da majestade marcasse suas exterioridades — tal qual imaginavam e desejavam os judeus —, um Messias triunfante, dominador sobre todos os povos. Renunciou a todas essas glórias e, nessa Noite Feliz, vemo-Lo um Bebê num estábulo, conforme nos descreve Bossuet:
“‘Encontrareis um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura’ (Lc 2, 12). Vós conhecereis por esse sinal que Esse é o Senhor. Ide à corte dos reis, vós conhecereis o príncipe recémnascido por suas colchas recamadas de ouro e por um soberbo berço, o qual bem poderia ser um trono. Mas, para conhecer o Cristo que vos nasceu — esse Senhor tão elevado que Davi, seu pai, apesar de ser rei, O chama de ‘seu Senhor’ — não vos será dado outro sinal senão o da manjedoura, na qual se encontra deitado, e dos pobres panos nos quais está envolta sua débil infância. Ou seja, não Lhe foi dada senão uma natureza semelhante à vossa, debilidades como as vossas, uma pobreza abaixo da vossa. Quem de vós nasceu numa manjedoura? Quem de vós, por mais pobre que seja, dá a seus bebês uma manjedoura por berço? Jesus foi o único que se via colocado nessa situação extrema, e é sob esse signo que deseja ser conhecido. Se Ele quisesse se servir de seu poder, que ouro coroaria sua fronte! Que púrpura brilharia sobre seus ombros! Que pedrarias enriqueceriam suas roupas!” (1)
E foi por causa dessas aparências que os pastores reconheceram haver nascido “na cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo, o Senhor” (Lc 2, 11). “E nós vimos a sua glória, glória como de Filho Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” (v. 14). “Ninguém jamais viu a Deus; o Unigênito de Deus que está no seio do Pai, Ele mesmo é que O deu a conhecer” (v. 18).
Eis mais um incomensurável benefício dessa Noite Feliz: Jesus nos facilita e nos conduz a conhecer a Deus.
Deus se torna acessível e imitável
Ensina-nos a Filosofia nada existir em nossa inteligência que não tenha antes passado pelos sentidos. Daí uma grande dificuldade em conhecermos a Deus. As próprias parábolas do Divino Mestre procuram involucrar as doutrinas em figuras e imagens, para tornar acessível ao espírito humano a assimilação de um universo de princípios éticos, morais e religiosos. O homem necessita do conhecimento concreto para compreender o espiritual. A Epístola de hoje nos revela o grande milagre realizado pela Providência, naquela Noite Feliz:
“Deus, tendo falado outrora muitas vezes e de muitos modos aos nossos pais pelos profetas, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio de seu Filho” (Heb 1, 1-2).
Percorramos todos os conselhos e considerações descritos no livro da Sabedoria, ou no Eclesiástico, e veremos nada se comparar com a contemplação do Menino-Deus reclinado no Presépio. Deduzir as aplicações decorrentes da Lei Moral escrita numa pedra, não é fácil para o espírito humano e, menos ainda, conceber a imagem de Deus. Entretanto, ao fazer-se homem, Deus se tornou acessível e imitável.
Na mais feliz noite da História, os atributos de Deus se tornaram menos impenetráveis para nós. Jesus, além de externar a grandeza de sua onipotência, elevando o homem à divinização pela graça, pôde dizer-se impecável: “Quem de vós poderá argüir-me de pecado?” (Jo 8, 46). Só n’Ele foi possível contemplar a grandeza absoluta na inteira harmonia com a plenitude da despretensão e humildade.
Essas dádivas todas começaram seu curso na Gruta de Belém, trazidas pelo Menino-Deus, coberto não só pelo estrelado manto da noite, mas também por um véu de mistério. Ele padece frio, chora e, entretanto, é supremamente feliz. Frágil e quase um indigente, porém, está redimindo o mundo inteiro. Não está ainda na plenitude do uso de seus sentidos, mas regala-se no gozo da visão beatífica. Tudo isso “porque Deus amou de tal modo o mundo, que lhe deu seu Filho Unigênito, para que todo aquele que n’Ele crer não pereça mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16).
ADOREMOS AQUELE QUE NOS AMOU E REDIMIU
Nessa bem-aventurada noite, ao nos depararmos com um Menino e Deus ao mesmo tempo, ternura e veneração se unem em nossas almas num ato de adoração Àquele que nos criou e nos redimiu. A consideração da grandeza dadivosa desse amor divino que assume as insuficiências de nossa natureza, predispondo-se a tudo sofrer, sacrificando-se até a morte de cruz pelo desejo de nos fazer bem, arranca de nós — apesar de nossa maldade — os maiores atos de gratidão e de reciprocidade. Aquela criança indefesa crescerá e, quando adulta, manifestará sua benquerença por todos, percorrendo praças e ruas das inúmeras cidades de seu país, curando os enfermos, restituindo o caminhar aos paralíticos, a voz aos mudos, a audição aos surdos, a vida aos cadáveres. Sempre se reportando ao Pai, sem jamais deixar de perdoar a quem quer que se arrependesse de seus pecados, doce e afável com seus discípulos, nunca saiu dos limites de sua pobreza e humildade.
CONCLUSÃO
“João dá testemunho d’Ele e clama: ‘Este era aquele de Quem eu disse: O que há de vir depois de mim é mais do que eu, porque existia antes de mim. Todos nós participamos de sua plenitude, e recebemos graça sobre graça; porque a Lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade foram trazidas por Jesus Cristo’” (vv. 15-17).
Com os olhos postos no Menino Jesus, e pela intercessão de Maria e José, agradeçamos os incontáveis benefícios descidos e infundidos sobre nós a partir daquela “Beata Nox”, e imploremos a graça da santidade. Assim, livres de todo pecado, passemos não só uma noite, mas uma Eternidade Feliz.