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quinta-feira, 31 de março de 2011

Transfiguração


No post anterior, Mons João Clá Dias comenta um dos principais mistérios de nossa fé: a união da natureza Divina à humana na segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Agora Mons João explicará o sentido da Transfiguração. 
Nesse contexto, como situar a Transfiguração?

Um ensino puramente doutrinário não é capaz de, por si só, mover o homem a transformar sua vida. Um antigo adágio ilustra esta verdade de modo lapidar: “As palavras comovem, os exemplos arrastam”. Sobretudo quando o exemplo é íntegro e esplendoroso na verdade e no bem, tem ele uma força tal que age sobre as tendências da alma, convidando a um certo caminho — e às vezes impondo-o.
Ademais, há outro fator indispensável para arrebatar qualquer coração, e mantê-lo firme na reforma iniciada: a clareza do fim. Se este não estiver claro, o ânimo arrefecerá quando surgirem os primeiros lampejos das dificuldades e dos dramas, tão comuns em toda mudança de vida.
Ao tratar da Transfiguração de Jesus, assim se exprime São Tomás de Aquino sobre essa necessidade muito própria à criatura humana: “Para trilharmos bem um caminho, é necessário termos um conhecimento prévio do fim. Assim, o arqueiro não lança com acerto a seta, senão mirando primeiro o alvo que deve alcançar. (...) E isso sobretudo é necessário, quando o caminho é difícil e áspero, a jornada laboriosa, mas belo o fim” (3, q.45, a.1, c).
 Ora, para efetivar a Redenção com a morte na Cruz, e para formar a Igreja, Nosso Senhor Jesus Cristo ia submeter os apóstolos a provas duríssimas. Era muito conveniente, portanto, que fizesse conhecer experimentalmente, pelo menos a três deles, os fulgores de sua glória. Desse modo, não só se sentiriam robustecidos para enfrentar os traumas de sua Paixão, como também mais facilmente ajudariam seus irmãos a solidificar a Santa Igreja, e fortaleceriam os fiéis ao longo dos tempos.
Fulgor no Tabor, para suportar as agruras do Calvário
No mesmo tópico acima citado, São Tomás de Aquino continua a esclarecer, com sua genialidade habitual e sapiencial clareza:
“O Senhor, depois de haver anunciado a sua Paixão aos discípulos, convidou-os a lhe imitarem o exemplo. (...) Ora, o fim de Cristo, na sua Paixão, era alcançar não somente a glória da alma, que tinha desde o princípio da sua concepção, mas também a do corpo (...). E a essa glória também conduz os que imitam seu exemplo da Paixão, segundo diz a Escritura: Por muitas tribulações nos é necessário entrar no reino de Deus. Por isso era conveniente que manifestasse aos seus discípulos a sua claridade luminosa; e tal é a Transfiguração, que também concederá aos seus, segundo diz o Apóstolo (São Paulo): Reformará o nosso corpo abatido para o fazer conforme o seu corpo glorioso. Donde dizer (São) Beda: foi conseqüência de uma pia providência que, tendo gozado por breve tempo da contemplação da felicidade eterna, tolerassem mais fortemente as adversidades” (3, q. 45, a. 1, c).
Já muito anteriormente a São Tomás, o Papa São Leão Magno comentara: “Para que os apóstolos concebessem com toda a sua alma essa ditosa fortaleza, não tremessem ante a aspereza da cruz, não se envergonhassem de Cristo e não tivessem por degradante o padecer... manifestou-lhes o esplendor de sua glória, porque, embora cressem na majestade de Deus, ignoravam o poder do corpo sob o qual a divindade se ocultava... Pois, estando ainda revestidos da carne mortal, não podiam ver e compreender, de modo algum, a inefável e inacessível divindade, visão reservada na vida eterna para os limpos de coração” (Sermão 51).
 E continuando o mencionado sermão, São Leão Magno afirma: “Cada membro [do Corpo Místico de Cristo] pode almejar a participação na glória que, com antecipação, resplandeceu na cabeça. O que já antes havia sido previsto pelo Senhor, quando falava da majestade de sua vinda: então os justos brilharão como um sol no Reino de seu Pai (Mt 3, 33).”
 A Transfiguração do Senhor foi uma excepcional graça mística concedida aos três apóstolos escolhidos, no alto do Tabor. Sua recordação ficou como uma fonte de sólida confiança, que lhes permitiu suportar os maiores sofrimentos, pois, assistindo a ela, tiveram um vislumbre da luz plena e refulgente da eternidade.
“Per crucem, ad lucem”
Deus deseja conferir-nos eternamente sua própria felicidade, fazendo-nos partícipes de sua natureza no esplendor da glória. É fundamental para nós pensarmos, com constância, na glória eterna, como um prêmio imensamente grande a nós oferecido. Nada há de melhor do que essa meditação para enfrentarmos as dificuldades e as cruzes do dia-a-dia.
Muitas são as ofertas de uma felicidade passageira que encontramos hoje em dia, apresentando fórmulas “mágicas”... fora do único caminho que é Jesus Cristo e sua Igreja. Tudo não passa de pura ilusão. Fomos criados para o Céu! Eis o que nos dá ânimo, resolução e alegria. “Per crucem, ad lucem” — “Pela cruz, chegaremos à luz”.
Aqui está uma observação importante a ser feita: muitos há que nos mostram a cruz do Senhor, e isto é ótimo e digno de todo louvor! Todavia, não basta. O objetivo de nossa existência não é a dor, nem o sacrifício. Não podemos nos esquecer da luz, nosso verdadeiro destino. A cruz não é o ponto final de nosso processo humano: é apenas o caminho.
Graças místicas
A Transfiguração de Jesus fortificou as virtudes da fé e da caridade nos Apóstolos.
Enquanto a fé nos faz crer na divindade de Cristo e em suas promessas, a caridade nos conduz a uma entranhada união com Deus. São duas virtudes extremamente interdependentes. Sem a fé na esplendorosa vida eterna que nos espera, a caridade tende a desaparecer.
 Mas, se a fé e a caridade dos apóstolos tanto lucraram com a Transfiguração do Senhor, não haverá algo, nessa mesma linha, que poderá auxiliar a vida espiritual de cada um de nós?
 A resposta é inteiramente positiva. Deus derrama graças místicas sobre todos os que trilham as vias da salvação, em intensidade maior ou menor, segundo o caso. Mas ninguém está excluído de recebê-las. Quem no-lo afirma é o famoso teólogo dominicano, Pe. Réginald Garrigou-Lagrange:

 “Para esses autores, a vida mística não é coisa extraordinária, como as visões e revelações, mas algo eminente na via normal da santidade. Consideram eles que isso é comum para as almas chamadas a se santificar na vida ativa, como São Vicente de Paulo. Absolutamente não duvidam que os Santos de vida ativa tenham tido normalmente a contemplação infusa bastante freqüente dos mistérios da Encarnação redentora, da Missa, do Corpo Místico de Jesus Cristo, do preço da vida eterna, se bem que esses Santos diferem dos puramente contemplativos, no sentido de que neles essa contemplação infusa é mais imediatamente dirigida à ação.”  
É claro que tais graças místicas não isentam ninguém de realizar os esforços próprios à prática das virtudes, tal como no-lo refere em outro trecho o mesmo autor:
 “Conforme o que acabamos de dizer, vê-se que a ascética está ordenada à mística. “Acrescentemos por fim que, para todos os autores católicos, a mística que não pressupõe uma ascese séria é uma falsa mística: foi a dos quietistas.”

Um “Tabor” em nossos corações
É fora de dúvida, pois, que Deus concede “Tabores”, ou seja, graças místicas, a cada um de nós.
 Quem não terá sentido, alguma vez, uma alegria interior, um palpitar do coração, uma emoção calma mas profunda, ao assistir a uma bela cerimônia? Ao apreciar o canto gregoriano, por exemplo? Ou ao contemplar alguma imagem? Quiçá ao ver um lindo vitral banhado de luz, dentro de uma igreja silenciosa, que deixa lá fora os ruídos do mundo? São mil ocasiões em que a graça sensível nos visita, e nos concede contemplações interiores, pré-degustações da felicidade perfeita que nos espera no Céu.
 Dois Doutores da Igreja, Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz, mestres da vida espiritual, dizem que a Providência costuma conceder aos principiantes graças místicas que depois irão experimentar novamente só no fim de suas vidas. Tal proceder divino visa fortalecer essas almas para atravessarem os períodos de aridez. É um modo comum de Deus agir: dá-nos consolações — o Tabor — para, quando vier a hora do Getsêmani, termos forças, sabendo que o fim será mais cheio de alegria e esperança.
São graças que nos animam a enfrentar os sacrifícios desta vida. Trata-se de experiências místicas que nos tornam patente quanto Jesus nos ama e quer nossa eterna glória.
Assim, ao longo de nossa existência terrena, já iremos experimentando um pouco das delícias eternas, e as tendas tão desejadas por São Pedro sobre o monte da transfiguração, Jesus as irá levantando no “Tabor” de nossos corações. Para tal, Ele exige de nós apenas uma condição: que não Lhe coloquemos obstáculos.

terça-feira, 29 de março de 2011

Transfiguração

O transfigurar-se no Tabor, Jesus não quis somente fortalecer os apóstolos, mas todos os fiéis — incluindo cada um de nós —, até o fim do mundo.

Verdadeiro Homem
Um dos principais mistérios de nossa fé é a encarnação do Verbo. Com efeito, quem poderia excogitar a possibilidade de uma das Pessoas da Santíssima Trindade unir sua natureza divina à humana, e — sem deixar de ser verdadeiro Deus — se tornar também verdadeiro Homem? Nunca, pelo simples raciocínio, nenhum homem — e nem mesmo algum Anjo — conceberia tal conúbio entre Criador e criatura. Para conhecermos esse belo e atraente mistério, era necessário que o próprio Deus no-lo revelasse. O Redentor foi radical em assumir a humana condição, dentro da frágil contingência desta (excluído o pecado, como também qualquer defeito). Por exemplo, ao escolher as mais modestas circunstâncias para nascer: a total pobreza, uma gruta, o auge do inverno, tendo por berço apenas uma manjedoura.
 São inúmeros os episódios do Evangelho nos quais transparece a natureza humana de Jesus: o ter de fugir para o Egito, levado por Maria e José, a fim de poupar-se da espada de Herodes; o trabalhar como humilde carpinteiro, até os 30 anos de idade, evitando chamar a atenção do povo; o fazer penitência durante 40 dias no deserto, suportando as agruras de um terrível jejum; o verter sangue no Jardim das Oliveiras, em meio ao temor e à angústia ante a Paixão; o externar fraqueza física durante sua flagelação e enquanto carregava a cruz ao alto do Calvário. Por fim, a sua morte, como a de qualquer ser humano, e no pior dos suplícios.
Como diz São Paulo: “Sendo Ele de condição divina, não reteve avidamente sua condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens” (.l 2, 5-7). Sem uma especial assistência da graça, seria inevitável para qualquer um, ao ouvir a narração desses fatos, concluir que Jesus não passava de uma mera criatura humana.
Verdadeiro Deus
Por isso, o Unigênito Filho de Deus, para sustentar nossa fé, tornou patente sua origem eterna e incriada em muitos outros fatos e circunstâncias: a anunciação à Santíssima Virgem por meio de um Arcanjo; o aviso a São José, em sonhos, da concepção virginal de Maria; a aparição de uma multidão de anjos aos pastores, perto da gruta de Belém, para lhes anunciar o nascimento de Jesus; a moção sobrenatural no interior dos Santos Reis Magos, sobre a providencialidade daquele Menino. Sobretudo foi categórica sua glorificação, efetuada pelo Pai e pelo Espírito Santo, no momento do batismo no Jordão:
“Quando todo o povo ia sendo batizado, também Jesus o foi. E estando Ele a orar, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba; e veio do céu uma voz: ‘Tu és o meu Filho bem-amado; em ti ponho minha afeição’” (Lc 3, 21-22).
O próprio Salvador, ao afirmar “quem crê em Mim tem a vida eterna” (Jo 6, 47), não fazia referência à sua natureza humana, mas sim à sua divindade. A multiplicação dos milagres, cujo auge foi a ressurreição de Lázaro, tornou a todos evidente o pleno poder de Jesus sobre a natureza:
“Subiu Ele a uma barca com seus discípulos. De repente, desencadeou-se sobre o mar uma tempestade tão grande, que as ondas cobriam a barca. Ele, no entanto, dormia. Os discípulos achegaram-se a Ele e o acordaram, dizendo: ‘Senhor, salva-nos, nós perecemos!’ E Jesus perguntou: ‘Por que este medo, gente de pouca fé?’ Então, levantando-se, deu ordem aos ventos e ao mar, e fez-se uma grande calmaria. Admirados, diziam: ‘Quem é este homem a quem até os ventos e o mar obedecem?’” (Mt 8, 23-27).
Essa mesma pergunta pervadiria a mente de todos os que, durante aqueles ditosos três anos nos quais o próprio Deus caminhou pelas estradas da Palestina, d’Ele puderam aproximar-se. Seria Elias que voltara, ou algum dos outros profetas? Ou teria surgido um novo profeta? A resposta germinou nas almas mais virtuosas, ou mais predispostas a amar a verdade, e, pode-se dizer, desabrochou por inteiro na confissão de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus Vivo!” (Mt 16, 16), ou no Calvário, quando, em meio ao terremoto, raios e trovões consecutivos à morte de Jesus, brotaram dos lábios do centurião romano as entusiasmadas palavras: “Este homem era realmente o Filho de Deus” (Mc 15, 39).
 Apesar dessas — e de tantas outras — manifestações serem mais que suficientes para levar os homens ao ato de fé na divindade de Nosso Senhor, apareceram heresiarcas a negá-la, já no começo do cristianismo. Aliás, uma das razões pelas quais São João, o discípulo amado, escreveu seu Evangelho, entre os anos 80 e 100 de nossa era, foi para reafirmar ser Jesus verdadeiro Deus. E o conjunto dos Evangelhos, procurando sublinhar a mesma verdade, por mais de cinqüenta vezes dá-Lhe o título de Filho de Deus.
É necessário ter essas considerações em vista, para melhor analisarmos e compreendermos a Transfiguração do Senhor.
Conveniência da Transfiguração
Jesus poderia ter descido à Terra acompanhado de legiões de anjos, e manifestado em todo o esplendor sua infinita grandeza divina. Contudo não agiu assim. Revelou-nos sua natureza incriada de forma progressiva, e aos poucos foi se tornando mais categórico.
Diante de um povo ansioso por riquezas e grandezas materiais, era conveniente usar de muita cautela no fazer-se conhecer enquanto Deus: “Então ordenou aos discípulos que a ninguém dissessem que Ele era o Messias” (Mt 16,20). Ao longo do Evangelho, diversas vezes Ele repete essa proibição, obrigando a observá-la até os próprios demônios: “Quando os espíritos imundos o viam, prostravam-se diante dele e gritavam: ‘Tu és o Filho de Deus!’ Ele os proibia severamente que o dessem a conhecer” (Mc 3,12). No mesmo sentido, após a Transfiguração no monte Tabor, disse Ele aos três apóstolos: “A ninguém contem esta visão até que o Filho do homem tenha ressuscitado dos mortos” (Mt 17,9). Caso a notícia se espalhasse, receava Jesus que surgisse um movimento meramente exterior e materialista, da parte de quem ansiava por um Messias temporal, restaurador do poderio de Israel sobre as outras nações.
Nesse contexto, como situar a Transfiguração?

(Ler a continuação no próximo post...)

segunda-feira, 28 de março de 2011

A prudência da carne e a prudência santa



O administrador infiel usa de prudência para garantir sua própria subsistência. Essa mesma sagacidade e diligência deveriam ter os filhos da luz para alcançar a santidade.

O homem ante a pobreza

Havia um certo país onde, segundo narra São João Damasceno, os cidadãos anualmente elegiam um novo rei a fim de evitarem os riscos de uma possível tirania. Conhecedores da sede de mando existente em todo homem, não permitiam a estabilidade perene do monarca: no final do ano, ele era destronado e deportado para uma ilha deserta na qual, depois de algum tempo, falecia por falta de recursos e de alimentos. Foi esse o destino de vários reis até que um, durante o exíguo reinado de 360 dias, transportou para a tal ilha tudo quanto pôde em matéria de subsistência para o resto de sua vida.

Soube ele contornar o mais temido dos males, ou seja, a pobreza. E, em parte, compreende-se esse temor em função de alguns instintos de nossa natureza, como, por exemplo, o de conservação e o de sociabilidade. A perspectiva da carência do essencial para nossa vida nos deixa aturdidos. A miséria extrema, sem uma intervenção de Deus, destrói no homem as últimas energias, aferra sua atenção à matéria e o incapacita de elevar as vistas para as considerações espirituais. Tal era, de acordo com a narração de São João Damasceno, a situação dos reis exilados após expirar seu mandato, lutando pela vida numa ilha sem recursos. Deixemos de lado os casos agudos como o mencionado acima e focalizemos a pobreza comum, aquela consistente em obter estritamente o necessário e, assim mesmo, mediante um árduo esforço. Nessas circunstâncias, embora conhecendo o grande apreço que Deus manifesta pela pobreza, assim como todos os privilégios a ela inerentes — as Escrituras encontram-se pervadidas de menções a esse respeito — as apreensões da criatura humana face às contingências da pobreza, conduzem-na a optar pelas vias da falsa ou verdadeira prudência.


Uma falsa prudência

Esta virtude, quando é falsa, portanto, entendida num sentido pejorativo, busca um fim terra-a-terra, temporal e passageiro. Ela é fruto de uma filosofia pagã para a qual não existe Deus, nem a alma humana e a remuneração futura. Essa impostação de espírito está bem sintetizada na atitude das virgens loucas (cf. Mt 25, 1-13) e repudiada por Deus em inúmeras passagens do Antigo e do Novo Testamento (cf. Pr 4, 19; 25-26; 1Cor 1, 19; Rm 8, 6; 1Tm 3, 2 s; 1Pd 4, 7; etc.).

Não poucas vezes a falsa prudência sabe empregar manhas e artimanhas para obter os bens terrenos, mas não os eternos. Para ela, o fim justifica os meios. Fundamenta-se ela na sabedoria deste mundo e daí surgem equívocos como, por exemplo, o de querer construir edifícios eternos com o que não é senão passageiro. Comenta São Paulo: “Ninguém se engane a si mesmo; se algum dentre vós se tem por sábio segundo este mundo, faça-se insensato para ser sábio. Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus, pois está escrito: ‘Eu apanharei os sábios na sua própria astúcia’. E outra vez: ‘O Senhor conhece como são vãos os pensamentos dos sábios’” (1 Cor 3, 18-20).

A virtude da prudência

Diametralmente oposta se encontra a verdadeira virtude da prudência. A ela só se aferra quem se deixa conduzir pela graça de Deus, ao se ver diante da perspectiva de uma vida feita de pobreza. O quadro abaixo nos esclarece bem o quanto consiste esta virtude na reta escolha dos meios convenientes para obter um determinado fim (1).

Quem magistralmente soube transpor para a prática essa bela doutrina da prudência foi Santo Inácio de Loiola, o Fundador da Companhia de Jesus, na primeira meditação de seus Exercícios Espirituais: “O homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor, e mediante isso salvar a sua alma”. Saber servir-se das criaturas — inclusive do dinheiro — para alcançar esse fim, é o divino ensinamento ministrado por Jesus na parábola do Administrador infiel, mas prudente, da Liturgia de hoje.

O administrador infiel

Disse também a seus discípulos: “Um homem rico tinha um feitor, que foi acusado diante dele de ter dissipado os seus bens.

“Nas três parábolas anteriores — comenta o Pe. Juan de Maldonado —, Cristo ensinara o cuidado que Ele tinha em converter os pecadores e sua benignidade para com os já convertidos; nesta, reportando-se à benignidade de Deus, ensina o empenho e a diligência que devem os pecadores, por sua vez, empregar para converter-se à amizade divina. Por este motivo expôs as três parábolas anteriores aos escribas e fariseus, que Lhe tinham dado a ocasião, e, por outro lado, esta Ele a propõe aos discípulos e a todos os seus ouvintes. É este o sentido da frase: ‘Disse também a seus discípulos’, ou seja, do mesmo modo como antes havia feito aos escribas e fariseus, segundo observa São Jerônimo”

Apesar deste comentário de Maldonado, devemos observar, para melhor clareza de interpretação, que continuarão presentes os fariseus enquanto ouvintes também nesta quarta parábola, conforme podemos constatar nas palavras de Lucas logo ao término da mesma: “Os fariseus, como eram avarentos, ouviam suas palavras e troçavam d’Ele” (Lc 16, 14). Aliás, essa seqüência de parábolas — a da ovelha desgarrada, a da dracma perdida, a do filho pródigo e esta do administrador infiel, mas prudente — se inicia pelo escândalo que significou aos olhos dos fariseus e dos doutores da Lei, o fato de verem “todos os cobradores de impostos e pecadores” se aproximarem de Jesus para serem instruídos: “Este acolhe os pecadores e come com eles” (Lc 15, 1-2). Essa foi a razão pela qual Jesus lhes propôs as três parábolas sobre a misericórdia. Portanto, também nesta quarta estão concernidos os escribas e fariseus. Tanto mais que Ele lhes dirá como uma das conclusões: “Fazei amigos com as riquezas da iniqüidade...” (v. 9).

Somos administradores de bens alheios e transitórios

Pelo que se pode deduzir dos versículos 6 e 7, relativos às dívidas que o feitor tinha obrigação de bem conduzir e cobrar, as propriedades desse tal “homem rico” deveriam consistir em olivais e trigais. Tudo leva a crer — e a maioria dos comentaristas coincide nesta apreciação — que o fato deste último “dissipar os bens” de seu senhor não se devia só ao relaxamento, mas também a abusos para satisfazer seus prazeres pessoais.

Já de início, neste versículo do Evangelho de hoje, cabe uma aplicação moral a cada um de nós: “Uma idéia errônea que domina os homens, aumenta seus pecados e diminui suas boas obras, consiste em crer que tudo quanto temos para as atenções da vida, nós o devemos possuir como senhores e, em conseqüência, nós o procuramos como o bem principal. Contudo, é exatamente o contrário, pois não fomos colocados nesta vida como senhores em sua própria casa, mas, isto sim, como hóspedes e forasteiros levados aonde não queremos ir e quando não pensamos: quem agora é rico, em breve será mendigo. Assim, sejas quem fores, deves saber que és apenas dispensador de bens alheios, dos quais te foi dado uso transitório e direito muito breve. Longe, pois, de nossa alma o orgulho da dominação, e abracemos a humildade e a modéstia do arrendatário ou caseiro” (3). Deus, portanto, coloca em minhas mãos os bens do corpo e da alma — os bens materiais e os da graça, vida, talentos, riquezas, etc. — para que eu os administre em função de sua Lei e glória. Que uso faço dos bens recebidos das mãos de Deus?

Súbita prestação de contas

Chamou-o e disse-lhe: Que é isto que eu ouço dizer de ti? Dá conta de tua má administração; não mais poderás ser meu feitor.

O senhor da parábola não demonstra ser muito vigilante por seus próprios bens, pois é só depois de receber de outros as informações a respeito da má conduta de seu administrador é que se põe a campo para retomar o controle da situação. O auxílio para ter uma real noção dos negócios e empreendimentos de sua propriedade lhe chega aos ouvidos através de pessoas invejosas e que desejam permanecer no anonimato para não se exporem a represálias ou vinganças.

É compreensível a atitude do senhor de pedir contas, pois nós também, em nosso relacionamento com Deus, “quando, em vez de administrar de modo a agradar-Lhe os bens que nos foram confiados, abusamos deles para satisfazer nossos gostos, convertemo-nos em arrendatários culpáveis”.

Ademais, percebe-se por essa sentença proferida pelo senhor, sua impossibilidade de aplicar um castigo proporcionado. “Não mais poderás ser meu administrador, por ser esta a primeira sanção que recebe quem administra mal os bens de seu amo, e também por não poder nem ser costume um rico castigar de outra maneira, pois o feitor não é um escravo que podia ser açoitado ou morto, mas um homem livre ao qual o senhor não podia dar outro castigo senão o de privar da honra e do cargo. Assim se pode aplicar ao pecador que, por sua má administração, isto é, por sua má observância da Lei de Deus, não é sempre removido de sua função nem excluído da Igreja, não é sempre privado de sua dignidade eclesiástica nem despojado dos bens que administrou mal, mas sempre é castigado”.

“Dá conta de tua má administração...” Um raio lhe atravessa o caminho. Quiçá, jamais tenha prestado contas durante a vida, e nada levava com ordem. Pela primeira vez, vê-se na contingência de reconhecer a existência de um senhor, ante o qual deve responder por seus atos. Quantos de nós não fazemos os mesmos equivocados cálculos? Só na hora do juízo de Deus, realizamos sermos meros administradores dos bens... Um certo dia, desconhecido por nós, mas não muito longínquo, seremos demitidos de nossa administração dos bens deste mundo. Prestadas as contas, qual será nosso destino eterno?

“A mesma coisa nos diz o Senhor todos os dias, apresentando-nos como exemplo aquele que, gozando de saúde ao meio-dia, morre antes da noite, e aquele que expira em uma festa: assim deixamos a administração de vários modos. Mas o bom administrador, o qual tem confiança, devido à sua boa administração, deseja dissolver-se como São Paulo e estar com Cristo; enquanto quem se apega aos bens da terra se encontra cheio de angústia na hora derradeira” .

Consciência da culpa

Então o feitor disse consigo: Que farei, visto que o meu senhor me tira a administração? Cavar não posso, de mendigar tenho vergonha.

“O feitor nem sequer tenta uma autodefesa. Tem a consciência machada e sabe perfeitamente que é verdade o que chegou ao conhecimento do senhor” (7).

Vemos neste versículo o retrato daqueles que viveram negligentemente ao longo de sua existência terrena, tal como afirma São João Crisóstomo. Se esse administrador estivesse habituado ao trabalho, não temeria ser despedido.

E nós? Poderemos trabalhar pela nossa salvação após a morte? Como nos precavermos em face a esse futuro?

Diligência do mau administrador para garantir seu futuro

Já sei o que hei de fazer, para que, quando for removido da administração, haja quem me receba em sua casa.

Usando de monólogos, também nós, em muitas ocasiões, tomamos nossas decisões como o fez o administrador. Para satisfazer sua preguiça e seu orgulho, evitando o trabalho e a mendicância, ele idealiza um meio eficaz que, em função de seu mau caráter, uma vez mais não levará em conta os interesses de seu senhor, mas sim os de seu egoísmo.

Os comentaristas aproveitam a reação desse mau feitor para mostrar como ele, tendo diante dos olhos um fim muito claro — o de sua própria subsistência —, pôs-se imediatamente a campo e usou dos meios para atingi-lo. Reprovando seu relaxamento moral, fazem eles uma aplicação ao caso específico de nossa salvação eterna. Se tivéssemos robusta convicção a respeito de nossa vida post-mortem, o fim último de nossa existência, seríamos mais diligentes em aplicar os devidos meios para obter a perpétua felicidade.

Sublinham eles de modo especial essa tenacidade do administrador em alcançar seus objetivos e a tomam como exemplo para nós “porque todo aquele que, prevendo seu fim, alivia com boas obras o peso de seus pecados (perdoando a quem lhe deve ou dando boas esmolas aos pobres), e dá liberalmente os bens do senhor, granjeia muitos amigos que hão de prestar bom testemunho dele perante o juiz, não com palavras, mas manifestando suas boas obras, e de preparar-lhe, com seu testemunho, a mansão do consolo. Nada há que seja nosso, pois tudo é do domínio de Deus”.

A pressa para atingir objetivos neste mundo

E chamando a cada um dos devedores do seu senhor, disse ao primeiro: ‘Quanto deves ao meu senhor?’ 6 Ele respondeu: ‘Cem medidas de azeite’. Então disse-lhe: ‘Toma o teu recibo, senta-te e escreve depressa: cinqüenta’. 7 Depois disse a outro: ‘Tu quanto deves?’ Ele respondeu: ‘Cem medidas de trigo’. Disse-lhe o feitor: ‘Toma o teu recibo e escreve oitenta’.

Sobre quais seriam esses devedores e a transposição dessas medições aos usos desta ou daquela atualidade, pululam entre os autores hipóteses e cálculos. Por que se trata de dois devedores, e nem mais nem menos, para significar que devemos granjear muitos amigos, coincidimos com o célebre Maldonado em que, pela necessidade de uma quase esquematização, era mais adequado usar de uma narração breve. Idem no que tange ao azeite e ao trigo. Poderiam também ser outros produtos.

A respeito da diferença nas reduções ilícitas, mais provavelmente se deve ao senso de oportunidade do administrador, o qual oferecia a cada um dos devedores o suficiente para obter análogos resultados.

Chama a atenção a pressa do administrador em atingir suas metas. Infelizmente, assim também somos muitos de nós, ou seja, elaboramos planos e com rapidez os realizamos para os fins a atingir neste mundo, mas tudo se torna difícil, e até insolúvel, quando o objetivo é a nossa santificação. Nosso fim último é o supremo em relação aos outros, mas nem sempre lhe tributamos a importância devida. Quantos de nós não preferimos — bem ao contrário desse administrador — deixar para amanhã a realização de nossos propósitos de santidade? Na juventude, com fervor sonhávamos concretizá-los na maturidade, já tão próxima. Entrando nesta, jamais nos parece ela caminhar a passos velozes para o seu término definitivo...

Vemos por esses versículos o quanto se empenha o tal administrador em deitar o peso de seus esforços para fazer amigos comparsas de suas fraudes, a fim de ser por eles amparado no futuro. Esse deve ser nosso empenho na busca da amizade de Deus, dos justos, dos castos, dos pobres, etc.

Sagacidade dos filhos deste mundo

E o senhor louvou o feitor desonesto, por ter procedido sagazmente. Porque os filhos deste mundo são mais hábeis no trato com os seus semelhantes do que os filhos da luz.”

Surge aqui outro versículo muito discutido entre os autores. O elogio do senhor da parábola não recai sobre os aspectos ilícitos e imorais dos atos praticados por seu administrador, mas tão-somente sobre a esperteza deste. “Denominam-se contraditórias estas parábolas para compreendermos que — se pôde ser louvado pelo seu amo o homem que defraudou seus bens — muito mais devem agradar a Deus os que fazem aquelas obras de acordo com seus preceitos”

Por “filhos deste mundo” devemos entender como sendo aqueles que só se preocupam com os bens temporais. Os “filhos da luz” crêem na vida eterna após a morte, na resurreição final e trabalham por sua salvação. Entretanto, a “prudência” dos primeiros é infatigável, solerte, pertinaz, inteligente, hábil com vistas a obter seus objetivos. Assim devemos ser nós face ao nosso fim último, e nisso consiste o conselho implícito na comparação feita por Jesus. Apenas para ressaltar a clareza de compreensão, é bom frisar que os “filhos da luz” são inferiores muitas vezes em matéria de prudência, mas não em sabedoria.

Portanto, Eu vos digo: “Fazei amigos com as riquezas da iniqüidade, para que, quando vierdes a precisar, vos recebam nos tabernáculos eternos”.

Este versículo recalca mais a importância da sagacidade e da prudência a serem empregadas com vistas à vida eterna. Trata-se, portanto, de duas considerações diferentes que devem ser analisadas segundo as respectivas essências.

Deus é o verdadeiro proprietário de todo o Universo

Quem é fiel no pouco também é fiel no muito; e quem é injusto no pouco também é injusto no muito. Se, pois, não fostes fiéis nas riquezas iníquas, quem vos confiaria as verdadeiras? E, se não fostes fiéis no alheio, quem vos dará o que é vosso? 13 Nenhum servo pode servir a dois senhores, porque, ou odiará um e amará o outro, ou se afeiçoará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro.

Alguns autores dão a estes quatro versículos o título de “apêndices parabólicos sobre as riquezas”. As três máximas neles contidas são de fácil compreensão e dispensam longas considerações.

É de se notar que Jesus não condena a propriedade, mas a toma como sendo um bem a ser gerido temporariamente com vistas à vida eterna. Não passa o homem de simples administrador. Deus, sim, é o autêntico proprietário. Se essa distinção é ignorada pelo homem, acaba ele por violar a supremacia de Deus enquanto Senhor de todo o Criado, ingressando, assim, na injustiça.

“As riquezas existentes nesta terra não são de posse absoluta do homem. Ele é administrador desses bens de Deus. Deve, pois, ser-Lhe fiel neles. É a expressão externa de sua fidelidade. Assim receberá os ‘próprios’ que, neste contexto, pela contraposição estabelecida, parecem referir-se a dons espirituais que Deus, em compensação por essa fidelidade requerida para os outros, concede em abundância ao discípulo”.

As expressões: “riquezas verdadeiras” e “o que é vosso” referem-se aos bens sobrenaturais, os dons da graça, os únicos eternos e absolutos. Quanto ao último versículo , São Mateus o coloca ao longo do Sermão da Montanha e numa formulação quase idêntica: “Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de odiar um e amar o outro, ou há de afeiçoar-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Mt 6, 24). Tanto em Lucas como em Mateus, “põe-se a tese e dá-se a razão de não poder servir a dois senhores: a Deus e às riquezas. Naturalmente, entendido num sentido de apego a elas ou numa aquisição ou uso reprovável delas”.

Nestes versículos finais (9 a 13), o Divino Mestre se manifesta como o Arauto do desprendimento de tudo quanto passa. Não é ilícito guardar os bens num cofre, o que não podemos é entesourá-los em nossos corações.