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sexta-feira, 8 de abril de 2011

Amor e castigo se excluem?

“Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém” (Jo 2, 13).
O episódio se passou no início da vida pública do Senhor, pouco depois de seu primeiro milagre em Caná da Galiléia.
Pela Lei, os israelitas de todas as nações eram obrigados a se dirigir ao Templo por ocasião da Páscoa, o que levava uma grande multidão a se concentrar na Cidade Santa. Para lá seguiu também o Divino Mestre, sempre cioso em dar o exemplo de perfeita obediência à Lei, embora a ela não estivesse submetido.
Deplorável situação do Templo
Ao chegar ao Templo, Jesus deparou-se com um quadro desolador. Não constituiu uma surpresa para Ele o estado de desordem e profanação instalado na Casa de seu Pai. Havia muito que nela se praticavam abusos, e não era por falta de uma legislação clara. Na verdade, existiam proibições formais sobre o uso indevido do edifício sagrado, como, por exemplo, não poder-se atravessar o Templo para encurtar o caminho, usando-o como simples atalho.
As piores transgressões, porém, eram resultado do espírito de ganância. Recordemos as “justificativas” para a situação. Segundo as determinações mosaicas (Lv 5, 7; 15, 14-29; 17, 3; etc.), por ocasião da Páscoa, além dos sacrifícios votivos, os pobres deveriam ofertar uma pomba e os ricos, um boi ou uma ovelha. Ademais, todo judeu maior de 20 anos devia pagar anualmente meio siclo (Ne 10, 33-35; Mt 17, 23 e 24), na moeda em uso no Templo (Ex 30,13). Ora, a grande maioria dos peregrinos chegava de boa distância, sendo-lhes, portanto, muito incômodo transportar na viagem as oferendas, e por isso preferiam comprá-las em Jerusalém. Lucrando não pouco com esse comércio, os sacerdotes o permitiram, baseados em razões práticas.
“Encontrou no templo os negociantes de bois, ovelhas e pombas, e mesas dos trocadores de moedas” (Jo 2, 14).
Ocupando o pátio do Templo, aqueles variados rebanhos misturavam a cacofonia de seus mugidos e balidos às discussões, vozerio e gritaria dos comerciantes e fregueses. Eis, em síntese, a triste cena presenciada por Jesus ao entrar na Casa de Deus, convertida, assim, em um verdadeiro mercado oriental.
Divino açoite
“Fez ele um chicote de cordas” (Jo 2, 15).
O Homem-Deus — Aquele a cuja voz os mares e os ventos obedeceriam, pela qual a lepra, a cegueira, a surdez, a paralisia desapareceriam; Aquele que com o brado: “Lázaro, saia fora!”, ressuscitaria um morto de quatro dias; Aquele que veio nos trazer a Vida — põe-se a tecer um chicote de cordas.
Um simples ato de sua vontade onipotente seria suficiente para aniquilar todas aquelas criaturas: homens, animais e dinheiro. Por que desejou Ele empunhar um látego?
Como somos compostos de corpo e alma, não nos bastam as abstrações do raciocínio. Nossos sentidos corporais pedem figuras palpáveis, que nos auxiliem a compreender a verdade de modo profundo. Temos necessidade das asas dos símbolos para voar até Deus.
Um chicote saído das mãos de Jesus!
Na sua vida pública — recém-iniciada —, quantas vezes não dirá Ele aos pecadores arrependidos: “Vai, teus pecados estão perdoados!” Sua misericórdia constituirá um enorme escândalo para os fariseus.
Mas agora, aquelas divinas mãos sedentas de abençoar, curar, perdoar e salvar teceram um flagelo... para castigar os infratores da Lei.
Movido por um zelo ardente
“... expulsou todos do templo” (Jo 2, 15).
A ação de Jesus com o açoite em punho se inseria entre outras atitudes motivadas por seu zelo ardente pela santidade da Casa de Deus. Por um trecho de São Marcos, podemos ver a preocupação do Senhor em conservar, até nas minúcias, a sacralidade daquele lugar santo: “Não consentia que ninguém transportasse algum objeto pelo Templo” (Mc 11, 16). Este versículo é prova cabal de que a dramática expulsão dos vendilhões não foi uma atitude intempestiva. Reforçando esta idéia, o evangelista acrescenta: “[Jesus] ensinava-lhes nestes termos: ‘Não está porventura escrito: A minha casa chamar-se-á casa de oração para todas as nações’ (Is 56, 7)? Mas vós fizestes dela um covil de ladrões” (Mc 11, 17).
Quem ama, corrige e castiga
Não bastaria o mero ensinamento para inculcar nas mentes a maneira digna de se portar no Templo? Ainda mais se levarmos em consideração que o Mestre era o próprio Deus? Por que aplicar uma correção tão forte?
São perguntas que facilmente surgem devido ao definhamento, na sociedade atual, da noção de um prêmio e de um castigo por nossa conduta moral. Como lamentável conseqüência disso, vem se esvaecendo a compreensão dos benefícios da correção. Sim, lamentável, como se pode deduzir desta afirmação do livro dos Provérbios: “Perecerá por falta de correção e se desviará pelo excesso de sua loucura” (5, 23).
Quanto se prega hoje em dia contra a disciplina, a ponto de se deformar o verdadeiro conceito de liberdade! Uma concepção errada, baseada nas idéias de Rousseau — de que todo homem é bom, e por isso deve ser deixado entregue à sua natureza — penetrou em muitos ambientes, inculcando uma máxima que poderia ser expressa assim: “Todo homem é bom, a correção é que o torna mau.”
Entretanto, o ensinamento da Escritura não deixa margem a dúvida. Os autores sagrados discordam desse ponto de vista tão comum em nossos dias, como por exemplo, nesta passagem: “A loucura está ligada ao coração do menino, mas a vara da disciplina a afugentará” (Pv 22, 15). E mais adiante: “Não poupes ao menino a correção: se tu o castigares com a vara, ele não morrerá, castigando-o com a vara, salvarás sua vida da morada dos mortos” (Pv 29, 13-14). E ainda: “Aquele que poupa a vara quer mal ao seu filho, mas o que o ama, corrige-o continuamente” (Pv 13, 24).
Essas palavras talvez sejam duras para os ouvidos de hoje, todavia foram inspiradas pelo próprio Espírito Santo e devem ser recebidas com amor.
Mas, e a bondade?
A bondade do Homem-Deus é infinita, e portanto inesgotável. Mas Jesus não é exclusivamente Bondade. Ele é também Justiça. Apesar de serem extremos opostos, castigo e bondade constituem contrários harmônicos. Por esse motivo, numa educação sábia e virtuosa, assim como jamais podem faltar a bondade, o afeto, a misericórdia, também não pode ser desprezada a disciplina: “A vara e a correção dão sabedoria; o menino, porém, abandonado à sua vontade é a vergonha de sua mãe” (Pv 29, 15). Nesta matéria tão delicada, nota-se uma perfeita continuidade entre o ensinamento moral do Antigo e o do Novo Testamento.
Benéficos efeitos da correção
O Apóstolo, ele próprio objeto de uma repreensão e castigo do Senhor, após ter sido derrubado do cavalo e ter ouvido uma voz de timbre a um tempo ameaçador e bondoso, inquirindo-o por sua injusta perseguição, não tardou em exclamar: “Senhor, o que queres que eu faça?” Converteu-se no mesmo ato. Foi ele quem anos mais tarde escreveria aos hebreus estas belas palavras: “Estais esquecidos da palavra de animação que vos é dirigida como a filhos: Filho meu, não desprezes a correção do Senhor. Não desanimes, quando repreendido por ele; pois o Senhor corrige a quem ama e castiga todo aquele que reconhece por seu filho (Pr 3, 11s). Estais sendo provados para a vossa correção: é Deus que vos trata como filhos. Ora, qual é o filho a quem seu pai não corrige? Mas se permanecêsseis sem a correção que é comum a todos, seríeis bastardos e não filhos legítimos. Aliás, temos na terra nossos pais que nos corrigem e, no entanto, os olhamos com respeito. Com quanto mais razão nos havemos de submeter ao Pai de nossas almas, o qual nos dará a vida? Os primeiros nos educaram para pouco tempo, segundo a sua própria conveniência, ao passo que este o faz para nosso bem, para nos comunicar sua santidade. É verdade que toda correção parece, de momento, antes motivo de pesar que de alegria. Mais tarde, porém, granjeia aos que por ela se exercitaram o melhor fruto de justiça e de paz. Levantai, pois, vossas mãos fatigadas e vossos joelhos trêmulos (Is 35, 3). Dirigi os vossos passos pelo caminho certo. Os que claudicam tornem ao bom caminho e não se desviem” (Hb 12, 5-13).
Torna-se assim evidente quanto o castigo nos auxilia a crescer no temor a Deus, que é o princípio da Sabedoria (Sl 110, 10), faz-nos abençoados por Deus (Sl 113, 13), torna ouvidas nossas orações e assegura nossa salvação (Sl 144, 19).
“Lembraram-se então os seus discípulos do que está escrito: O zelo da tua casa me consome (Sl 68, 10)” (Jo 2, 17). Este é um dos efeitos do castigo sobre os bons: produz uma admiração amorosa e faz desabrochar a estima pela Sabedoria.
Os maus detestam ser corrigidos
Mas fixemos agora nossa atenção na atitude dos maus.
“Perguntaram-lhe os judeus: Que sinal nos apresentas tu, para procederes deste modo?” (Jo 2, 18).
O homem mau não aceita a correção, porque não ama a lei de Deus. Ao contrário do homem sábio, que ama quem o repreende (Pv 9, 9), eles detestavam a correção, por não buscarem a Sabedoria; sentiam horror ao castigo, por não quererem emendar-se de suas faltas.
 “Respondeu-lhes Jesus: Destruí vós este templo, e eu o reerguerei em três dias” (Jo 2, 19).
 Jesus não põe em dúvida o direito de os sacerdotes exigirem uma prova de sua autoridade. Por ser a Sabedoria Eterna, aceitou o desafio, fazendo-lhes uma proposta enigmática. Eles, interpretando-a literalmente, como se Jesus estivesse se referindo ao edifício material, responderam ironicamente: “Em quarenta e seis anos foi edificado este templo, e tu hás de levantá-lo em três dias?!” Mas o evangelista acrescenta: Jesus se referia ao “templo de seu corpo”, santuário vivo da divindade, que Ele ressuscitaria três dias após a crucifixão no Calvário. Jesus costumava exprimir-se assim, de modo velado, quando se encontrava diante de um público hostil.
Como reagiu Jerusalém em face de Jesus
“Enquanto Jesus celebrava em Jerusalém a festa da Páscoa, muitos creram no seu nome, à vista dos milagres que fazia” (Jo 2 ,23).
Esse trecho do Evangelho nos coloca em alerta contra um defeito muito perigoso. Nosso Senhor, enquanto a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, discerne o mais íntimo de suas criaturas desde toda a eternidade. Assim, sabe Ele avaliar tanto a devoção desinteressada de uma alma nobre quanto a sanha apropriativa daqueles que se entregam aos pendores do pecado original: “Mas Jesus mesmo não se fiava neles, porque os conhecia a todos. Ele não necessitava que alguém desse testemunho de nenhum homem, pois ele bem sabia o que havia no homem” (Jo 2, 24-25).
O Divino Mestre, penetrando naqueles corações, notava que apenas queriam d’Ele se servir. Sim, não é suficiente impressionar-nos com milagres e, por isso, crer no nome de Jesus. Nosso Redentor deseja de nós um amor feito de reciprocidade. “A fé sem as obras é morta”, diz São Tiago (2, 26). Diante do Homem-Deus é necessário deixar-se arrebatar de enlevo e veneração, entregar a alma sem obstáculos nem reservas, e pautar a própria vida por seus ensinamentos.
                                                                                                                                                                                      
Duas lições podem ser tiradas do Evangelho narrado por São João. Ele nos exorta a extrair de nossos corações o pragmatismo, o egoísmo de querermos nos servir de Jesus, das graças e da Religião apenas para nosso proveito pessoal, crendo em seu nome, mas não mudando de vida e de costumes. É correto conservarmos nossa maneira de viver e nossos costumes, desde que não sejam ilícitos. Indispensável é, porém, ter a alma enlevada e submissa à Moral e Religião ensinadas por Nosso Senhor, adorando-O em todos os aspectos de suas virtudes. Entusiasmados por sua Misericórdia e também por sua Justiça, como Jesus mostrou no episódio dos vendilhões do Templo. Ele quer ser adorado por nós e adorado na sua totalidade.

 Elejamos Maria — insuperável modelo desse amor a Jesus na sua integridade — como nossa mestra e guia da entrega sem limites que devemos fazer a Ele, adorando-O na harmonia de suas virtudes aparentemente contraditórias.

terça-feira, 5 de abril de 2011

O prêmio dos bemaventurados

Continuando a meditação sobre o dia do Juízo Final, ouçamos a palavra de Deus:

Então o Rei dirá aos que estão à direita: — Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo”.
 A essência do prêmio será a visão beatífica, quer dizer, a contemplação de Deus face a face. Pela força da graça nos será possível contemplar a própria essência de Deus, em vez de apenas discerni-Lo por seu reflexo nas criaturas: “Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido” (1 Cor 13,12).
Por nossa natureza, temos uma sede insaciável de felicidade, de um amor sem medida que nenhuma criatura conseguirá aplacar e só pode ser atendida pelo próprio Deus. O famoso teólogo Réginald Garrigou Lagrange, O.P., na obra La vie éternelle et la profondeur de l’âme, explica: “A profundidade de nossa vontade é tal, que só Deus pode preenchê-la e atraí-la irresistivelmente.”
A este propósito, exclama Santo Agostinho: “Infeliz quem conhece todas essas coisas [terrenas] e não Vos conhece, ó meu Deus! Feliz quem Vos conhece, embora ignore todo o resto. Quanto a quem Vos conhece e conhece também as coisas terrenas, não é mais feliz por conhecê-las, mas é unicamente o conhecimento que tem de Vós que o faz feliz, contanto que, conhecendo-Vos como Deus, glorifique-Vos também como Deus e Vos dê graças por vossos dons, e não se perca na vaidade de seus próprios pensamentos.”
Assim, após a morte, livre de tudo aquilo que a cercava na terra, a alma tem uma avidez veemente de voar para Deus, a fim de contemplá-lo face a face, conforme escreve o mesmo santo: “Fizestes-nos, Senhor, para Vós, e o nosso coração está inquieto até que repouse em Vós”(Confissões, 1.1).
Além da visão de Deus, os bem-aventurados receberão no Céu outros prêmios, infinitamente menores, mas mesmo assim valiosíssimos e incomparáveis com as coisas da terra.
Em primeiro lugar, terão corpos gloriosos. Lemos na primeira Epístola aos Coríntios: “Semeado na corrupção, o corpo ressuscita incorruptível; semeado no desprezo, ressuscita glorioso; semeado na fraqueza, ressuscita vigoroso; semeado corpo animal, ressuscita corpo espiritual” (1 Cor 15,42-44).
Ademais terão a inimaginável alegria de poderem contemplar Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora e os Santos, bem como as maravilhas do mundo já então renovado. Sim, pois o universo passará por uma inteira renovação, pela qual conservará apenas aquilo de mais belo que contiver, e será livre de toda matéria corruptível ou vulgar.
Como se não bastasse, os bemaventurados terão como morada o Céu empíreo, a respeito do qual escreve Garrigou-Lagrange:
“O Céu é o lugar e, melhor ainda, o estado da suprema bem-aventurança. Se Deus não tivesse criado nenhum corpo, mas apenas puros espíritos, o Céu não seria um lugar, porém tão-só o estado dos anjos que gozam da posse de Deus. Mas o Céu é também um lugar, no qual estão a Humanidade de Jesus, a Bem-Aventurada Virgem Maria, os anjos e as almas dos Santos. Embora não possamos dizer com certeza onde se encontra esse lugar em relação ao conjunto do Universo, a Revelação não permite duvidar de sua existência.
Grandes teólogos católicos afirmam ser o Céu empíreo um lugar concreto, entre eles o célebre jesuíta flamengo Cornélio a Lapide. Para este, o Céu é constituído de materiais nobres, com “palácios construídos de pérolas e pedras preciosas, como também prados, jardins e bosques ameníssimos”. Levado uma vez até ali, São Paulo viu algo tão esplendoroso que não encontrou palavras para o descrever, limitandose a exclamar: “O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, e o coração do homem não percebeu, isso Deus preparou para aqueles que o amam” (1 Cor 2,9).
O castigo dos condenados
Lancemos, agora, nosso olhar para aquela porção da humanidade que deverá ouvir a terrível sentença:
“Afastai-vos de mim, malditos!”.
O próprio Criador rejeita, para sempre, seres que Ele criou. Que castigo espantoso! Trata-se da chamada pena de “dano”, palavra derivada do latim damnum, “perda”, pois esse tormento consiste na perda da posse de Deus, nosso fim último.
Enquanto está na vida presente, a alma não consegue avaliar a imensidão dessa perda. Os bens sensíveis não param de lhe atrair a atenção; a todo momento recebe notícias domésticas ou profissionais, ou dos fatos nacionais e internacionais; tem preocupações e necessidades de alimentação, asseio, saúde, lazer; entrega-se a prazeres; acaricia ambições e projetos para a carreira e para a família, e está cercado de parentes, amigos, enfim, de tudo o que constitui seu mundo.
Mas quando a alma se separa do corpo, todo esse ruído cessa de repente, todos os interesses que a prendem na terra perdem seu valor. Ela se vê completamente só, e então aí... “toma consciência de sua profundidade sem medida, que só Deus, visto face a face, pode satisfazer; e vê também que esse vazio jamais será preenchido... [Se tiver morrido em pecado] ela se vê na noite do vazio, expulsa, repudiada, maldita” (GarrigouLagrange).
Por ser infinitamente verdadeiro, bom e belo, Deus é infinitamente atraente. Os condenados, por sua natureza, são atraídos por essa Beleza suprema, única capaz de satisfazer sua necessidade insaciável de amor. Mas Deus os repele por completo, e eles, em delírios de furor infernal, não fazem senão detestá-Lo, maldizê-Lo, blasfemar contra Ele. É o tormento de um coração apaixonado e roído de ódio. É o sofrimento atroz do amor contrariado, desprezado, transformado em fúria, posto continuamente num extremo de ódio e desespero.
“Ide para o fogo eterno, que foi preparado para o demônio e para os seus anjos!”.
 Comparada com o horror da pena de dano, a pena dos sentidos pode até parecer suave... Contudo, por si só é tremenda.
O agente desse castigo é o fogo: “Qual de vós poderá habitar em um fogo devorador?” — pergunta com pavor o profeta Isaías (33,14). O Inferno é um abismo de fogo, um “tanque ardente de fogo e enxofre” (Ap 21,8). E não nos iludamos, pensando que a expressão “fogo do Inferno” seja apenas uma metáfora, uma imagem para se referir ao remorso da consciência.
É doutrina universalmente aceita na Igreja, baseada na Sagrada Escritura e no consenso dos Padres, que se trata de um fogo real, eterno e inextinguível, que tortura os espíritos e queimará os corpos sem os destruir.
Uma resolução inadiável
Ao nos revelar esse mistério, Jesus demonstra sua infinita bondade para conosco. Seu objetivo, ao nos alertar de modo tão veemente, é evitar para nós a desgraça eterna, e levar-nos para junto d’Ele, na felicidade do Paraíso.
Profundamente gratos, tomemos sem demora a firme resolução de Lhe rogar as graças necessárias para reprimirmos nossas más paixões, evitar o pecado e praticar a virtude. De tal modo que possamos ouvir de seus lábios adoráveis este celestial convite: “Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo”. !

domingo, 3 de abril de 2011

A segunda vinda de Jesus
“Quando o Filho do Homem voltar na sua glória e todos os anjos com ele, sentar-se-á no seu trono glorioso. Todas as nações se reunirão diante d’Ele...”.

Assim Nosso Senhor inicia a descrição dos instantes finais dos homens nesta terra. Meditemos sobre isso, seguindo o categórico conselho do Eclesiástico: “Em todas as tuas obras, medita nos teus novíssimos e não pecarás eternamente” (7,40). “Novíssimo” é um termo vindo do latim novus, e quer dizer também “último”. É com esse significado que a Escritura o utiliza, para indicar os últimos acontecimentos de nossa vida: morte, juízo, Céu ou Inferno. De início, reparemos na linguagem empregada agora pelo Divino Mestre. Não se exprime mais por comparação nem metáfora (“O reino dos céus é semelhante..”), mas fala diretamente: “Quando o Filho do Homem voltar na sua glória...”. Não nos deixa dúvida quanto à realização do Juízo Universal, verdade, aliás, anunciada outras vezes por Ele mesmo: “Ai de ti, Corozaim! Ai de ti, Betsaida! (...) No dia do juízo, haverá menos rigor para Tiro e para Sidônia que para vós!” (Mt 11,21-22). “No dia do juízo, os ninivitas se levantarão contra esta raça e a condenarão, porque fizeram penitência à voz de Jonas. Ora, aqui está quem é mais do que Jonas” (Mt 12,41).
O tribunal
“Todas as nações se reunirão diante dele”, diz o Senhor. Quer dizer, nenhum homem, por mais poderoso que tiver sido, poderá subtrair-se a essa convocação. Não haverá espaço para exceções, tergiversações, adiamentos. A ordem é peremptória. Também os anjos deverão comparecer, afirma Jesus: “...e todos os anjos com ele”. Ora, se os homens é que serão julgados, qual a razão dessa presença angélica? Segundo explica a Suma Teológica, o Juízo Final “relaciona-se de algum modo com os anjos, na medida em que eles interferiram nos atos dos homens”. Assim, o principal papel das criaturas angélicas será o de servir de testemunhas. Mas, de alguma maneira, os anjos serão também julgados: “Não sabeis que julgaremos os anjos?”, pergunta São Paulo (1 Cor 6,3). E São Pedro afirma o mesmo a respeito dos demônios: “Pois se Deus não poupou os anjos que pecaram, mas os precipitou nos abismos tenebrosos do inferno onde os reserva para o julgamento” (2 Pe 2,4). Os anjos de Deus terão um prêmio, que será a grande alegria em vista da salvação de seus protegidos, enquanto os demônios terão um acréscimo de tormento, ao “multiplicar-se a ruína dos maus que por eles foram induzidos ao pecado” (Suma, Suplem. 89,8). Ainda no concernente à constituição do tribunal, certos homens terão um papel importante: serão co-juízes com Nosso Senhor. Isto é afirmado, entre outros, por São Paulo: “Não sabeis que os santos julgarão o mundo?” (1 Cor. 6,2). Segundo a Suma, esses co-juízes, “varões perfeitos”, julgarão por comparação com si mesmos, porque “trazem gravados em si os decretos da justiça divina” (Suplem. 89,1).
Separação dos julgados: o fim dos relativismos
Voltemos às palavras do Senhor no Evangelho: “... e ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. Colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda”. Na vida nesta terra, a alma humana, por uma espécie de instinto espiritual, procura incessantemente a verdade, o bem e o belo. Mesmo quando comete pecado, esses instintos espirituais continuam a atuar. Além disso, todo homem tem como que estampados na alma os Dez Mandamentos. Por tudo isso, ninguém consegue praticar o mal pelo mal, professar o erro pelo erro, admirar o horrendo pelo horrendo. Assim, se os pensamentos, desejos e atos de um indivíduo começam a fugir habitualmente das leis de Deus, sente ele a necessidade imperiosa de os justificar, racionalizando-os, isto é, buscando para eles explicações racionais, por mais absurdas que estas sejam. E a saída consiste geralmente em procurar uma conciliação entre a verdade e o erro, o bem e o mal, o belo e o horrendo. Tudo aquilo que antes era para ele de uma luminosidade cristalina, torna-se de uma indefinição nebulosa e pardacenta. E ele afunda no relativismo, funesto defeito moral, tão comum ao longo da história, causa de tantos erros doutrinários que afastaram da Igreja Católica e do caminho da virtude milhões e milhões de almas. No Evangelho aqui comentado desaparece todo capricho e devaneio a respeito da conciliação entre esses valores irreconciliáveis. “Non datur tertius” — não há uma terceira solução possível no dia do Juízo. Nosso destino será o Céu ou o Inferno. Será a mais fulgurante e universal manifestação do Absoluto na ordem da criação.
O julgamento
Uma interrogação que pode ter passado pelo espírito de vários leitores: a maior parte dos homens já terá sido julgada logo após sua morte (excetuam-se aqueles que estiverem vivos, quando chegar a hora do fim do mundo), por que, então, passar de novo por um juízo? A Suma Teológica (Suppl 88, I ad 1), bem como o Catecismo Romano, fazem compreender melhor a razão desses dois tribunais. De fato, no Juízo particular, cada homem é julgado privadamente por Deus, permanecendo o seu foro íntimo, bem como todas as conseqüências de seus peca dos, ocultos aos outros homens. Para a plena glorificação da justiça divina é indispensável que haja um outro juízo, público e universal, no qual fiquem patentes aos olhos de todos a inocência dos bons e a torpeza dos maus. Nenhum ato de virtude e nenhuma falta, por menores que sejam, serão omitidos. Assegura São Paulo que em Deus “vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17, 28), portanto nada pode escapar a seu divino conhecimento e a seu absoluto julgamento. Assim, no dia do Juízo “Deus fará prestar contas de tudo o que está oculto, todo ato, seja ele bom ou mau” (Ecl 12,14). A este propósito assevera São Paulo: “Porque teremos de comparecer diante do tribunal de Cristo. Ali cada um receberá o que mereceu, conforme o bem ou o mal que tiver feito enquanto estava no corpo” (2 Cor 5,10). “Por isso” — diz ainda São Paulo — “não julgueis antes do tempo; esperai que venha o Senhor. Ele porá às claras o que se acha escondido nas trevas. Ele manifestará as intenções dos corações. Então cada um receberá de Deus o louvor que merece” (1 Cor 4,5). Dessa forma, todos os nossos pensamentos virão à tona. Igualmente não estarão isentas de prêmio ou castigo nossas palavras: “Eu vos digo: no dia do juízo os homens prestarão contas de toda palavra vã que tiverem proferido” (Mt 12,36). O Redentor nos atribuirá méritos ou penas por nossas obras: “Retribuirá a cada um segundo as suas obras” (Rm 2,6). Também pedirá contas por nossas omissões: “Aquele que souber fazer o bem, e não o faz, peca” (Tg 4,17). Nossa consciência, portanto, por um auxílio divino poderoso, far-nos-á relembrar com claríssima memória todas as nossas ações, boas e más, e até as que deviam ter sido praticadas e não o foram por nossa culpa. Da mesma forma, nos recordará nossos pensamentos e desejos. Não somente, pois, os pecados graves, mas também os leves e até as imperfeições. Essa tão exata e minuciosa recordação já de si constituirá uma sentença inapelável. Nesta terra, quando queremos permanecer no mau caminho, abafamos nossa consciência. Porém, no dia do Juízo, ela se imporá às nossas veleidades.

E o prêmio dos bons? Como será?
Leia no próximo post