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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Tudo se obtém pela fé! (fim)

O grande prêmio da Fé humilde e sem rancor
Sem embargo, não podemos nos esquecer de que ali estava o melhor de todos os senhores, o mais bondoso de todos os pais, e não deixavam de ser humilhantes aquelas palavras. Porém em nada ofenderam a mulher prostrada a seus pés. A humildade autêntica não se ofende com nada. Em contrapartida, o orgulho e a soberba são causas das piores cegueiras. Pelo instinto materno e pela perspicácia própria às almas realmente humildes, percebendo o expediente que Jesus colocava à sua disposição, com todo o respeito ela replicou:
27 “Assim é, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos”.
Nesta declaração, humildade e Fé se abraçam e se osculam. Manifestando quanto é cândida sua alma, a Cananéia aceita com inteira cordura as incisivas palavras de Jesus. Ela continua a chamá-lO de Senhor, mostrando disposições de adoração, e argumenta dentro de uma lógica impecável em favor de suas necessidades.
28 Então Jesus disse-lhe: “Ó mulher, grande é a tua Fé! Seja-te feito como queres”. E, desde aquela hora, a filha dela ficou curada.
Eis quanto mais valem a Fé, a perseverança e a humildade do que a própria intercessão dos santos. O que nem os Apóstolos conseguiram, ela arrancou de Nosso Senhor e até mesmo aparentemente contra a vontade d’Ele. E, além do mais, o favor obtido vinha acompanhado de um belo elogio.
CONCLUSÃO
A Cananéia não teve medo de ser importuna, nem esmoreceu um só momento em seu ânimo e em sua Fé. O que realmente desejava era obter a cura de sua filha. Havia uma inteira correspondência entre seu anseio e seu pedido. Aqui se encontra uma condição essencial de uma boa oração: querer de fato aquilo que se pede. Inúmeras vezes não conseguimos atingir nossos objetivos porque não é autêntica nossa súplica.
Outro ensinamento que podemos extrair do Evangelho de hoje é a necessidade de nos instruirmos sobre a verdadeira e boa doutrina. A Cananéia ouviu e se informou a respeito dos atos e das pregações de Jesus. Isso lhe foi fundamental para crer. Um grande mal de nossos dias, a ignorância religiosa, talvez seja a principal causa dos dramas atuais, conforme nos afirma a Escritura: “Ouvi a palavra do Senhor, filhos de Israel! Porque o Senhor está em litígio com os habitantes da terra. Não há verdade nem misericórdia nem conhecimento de Deus na terra. Juram falso, assassinam, roubam, cometem adultério, usam de violência e acumulam homicídio sobre homicídio. (...) Porque meu povo se perde por falta de conhecimento” (Os 4,1-6).

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Tudo se obtém pela fé! (continuação)

Silêncio desconcertante
23 Ele, porém, não lhe respondeu palavra. Aproximando-se seus discípulos, pediram-Lhe: “Despede-a, porque vem gritando atrás de nós” .
Misterioso silêncio do Salvador, o que inflamava mais ainda o coração da angustiada mãe. Várias são as opiniões dos autores sobre este particular. A primeira impressão que se tem é a de que Jesus não desejava chamar atenção sobre Si, pelo fato de estar buscando isolamento, descanso e refúgio. Por outro lado, como Ele mesmo recomendara não utilizar os caminhos dos gentios, talvez fosse melhor não dar motivos para incompreensões ou calúnias.
Porém, a Glosa acentua um aspecto de suma importância sobre a causa dessa atitude do Divino Mestre: “Com essa dilação e falta de resposta, revela-nos o Senhor a paciência e a perseverança da mulher”. Melhor ainda se exprime a esse respeito Maldonado: “Parece-me que também por duas outras razões [Jesus] se calou: para provar a Fé e a constância da mulher ou para mostrar aos outros, como diz Crisóstomo, que ela teve Fé grande e especial, pois, desprezada e sem ouvir uma resposta, perseverou na súplica. Finalmente, quis Cristo fazer ver que, não por sua vontade, mas forçado e premido pelos importunos rogos da mulher, concedia a graça dos milagres aos gentios, embora não tenha sido enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”.
O alto grau de dramaticidade da cena impeliu os discípulos a intercederem por ela. Na interpretação desse pormenor os Padres e demais comentaristas são inteiramente unânimes.
De fato, à medida que ela externava sua aflição por seus clamores ao longo do caminho, certamente seu empenho em obter aquele favor crescia pela Fé que se robustecia a cada grito. Jesus e os seus devem ter resolvido entrar na casa dela, a fim de evitar o escândalo que, com sua atitude, ela promovia pelas ruas. Assim se entende melhor quanto é apenas aparente a contradição a propósito deste detalhe, entre as narrações de Marcos (7,24-30) e a de Mateus. Estando já, portanto, na casa da Cananéia, e antes de ela arrojar-se aos pés do Divino Taumaturgo, os Apóstolos rogam por ela e obtêm-lhe uma resposta. Até então, Jesus nem sequer a olhara, opondo ao seu fervor uma indiferença própria a desanimar qualquer pessoa. Mas as palavras de Jesus talvez fossem ainda mais duras que o silêncio anterior. Difícil teste para a humildade daquela mãe
24 Ele respondeu: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”.
Difícil é, à primeira vista, a compreensão dessa dura afirmação do Divino Mestre, mas, percorrendo-se os vários comentaristas, percebe-se a bela lógica da resposta, como, por exemplo, nestas palavras de São Jerônimo: “Não diz isso porque não houvesse sido enviado às demais nações, mas para indicar que fora primeiramente enviado a Israel e que, após ter este povo renegado o Evangelho, o Evangelho passaria com justiça aos gentios”.
Porém, não estava ao alcance da Cananéia essa explicação. Pode-se imaginar qual deve ter sido sua perplexidade ao ouvir aquela resposta. Sua natureza feminina, por si só já tendente à fragilidade, a inclinaria a perder o ânimo, sobretudo depois de um longo silêncio daquele Grande Senhor. Quantas mães, a essa altura, não teriam se retirado para chorar a sós ou em companhia de sua pobre filha, em meio a uma terrível depressão!
Para nós mesmos que ora consideramos essa cena, talvez não fosse necessário tanto para desistirmos de nosso intento. Não foi o que se passou com a Cananéia...
25 Ela, porém, veio e prostrou-se diante d’Ele, dizendo: “Senhor, valei-me”.
Quantas e quão boas virtudes demonstra possuir essa alma fervorosa! Se nós soubéssemos rezar com essa confiança e persistência, não obteríamos tudo o que pedimos? Quantas vezes deixamos de ser atendidos em nossas orações, pela falta de perseverança...
26 Ele respondeu: “Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos”.
Parece-nos que, pari passu com o crescimento na Fé da Cananéia, mais duras se tornam as palavras do Salvador. Elas nos causam uma certa incompreensão e não serão raros os que com elas possam ficar chocados, sobretudo entre nós, ocidentais.
Sobre este versículo assim se expressa Fillion: “Fazem notar os comentaristas — e com razão — que Jesus emprega um diminutivo que significa não os animais vulgares, sem dono, semi-selvagens, que andam errantes pelas ruas dos povoados orientais, alimentando- se de vis desperdícios, senão dos ‘cachorrinhos’ domésticos, cuidados em casa e que participam dos jogos das crianças” (12) Como Marcos escrevia para um público étnico-cristão, acrescenta à narração dessa mesma passagem uma forte atenuante (7, 27). Por isso continua Fillion: “Ademais, ao dizer o Divino Mestre: ‘Deixa primeiro fartarem-se os filhos’, afirmava, sim, o direito de prioridade dos judeus no tocante aos benefícios do Messias; mas declarava também que não lhes era exclusivo e que um dia alcançaria os gentios”.

( continua no próximo post)

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Tudo se obtém pela fé!

De volta do cativeiro na Babilônia, o povo judeu levou mais de um século para se reinstalar na Palestina (de 538 a.C. a 398 a.C.). Em certo período (aprox. em 458 a.C.), um segundo núcleo de retornados contou no seu meio com uma figura exponencial: Esdras. Entre suas várias iniciativas estava a de revigorar os costumes e preceitos prescritos por Moisés, de maneira muito especial os relativos aos casamentos mistos. Nessa ocasião foram excluídas de entre o povo judeu todas as mulheres cananéias, com seus respectivos filhos. Ademais, outro profeta, Neemias, tomado de santo zelo, em período posterior expulsou de Jerusalém os comerciantes da cidade de Tiro, assim como tomou severas medidas para separar o povo eleito dos estrangeiros.
COMENTÁRIO AO EVANGELHO
21 Partindo dali, Jesus retirou-Se para a região de Tiro e de Sidônia.
Os cananeus eram, portanto, um povo que de modo algum podia ser procurado pelos judeus, daí a perplexidade de alguns comentaristas, que buscam uma explicação mais cômoda para o conteúdo deste versículo. Maior é a perplexidade se lembrarmos que o próprio Jesus havia proibido a seus discípulos qualquer incursão em territórios dos gentios.
Na realidade o Divino Mestre penetrou naquelas terras para ocultar-Se e não para pregar. Porém, pelo fato de Ele permanecer ali várias semanas e, sobretudo, por ter se difundido amplamente sua fama, não demorou para que sua presença fosse percebida. Conforme nos relatam Marcos (3, 8) e Lucas (6, 17), alguns habitantes daquela região já haviam assistido à pregação de Jesus na Palestina. Além disso, é indispensável recordarmos o quanto o porte e grandeza do Homem-Deus tornavam-nO uma Pessoa que chamava possantemente a atenção logo num primeiro olhar. Daí a cena que veremos em seguida.
Uma mulher que rompe com os padrões errados vigentes
22 E eis que uma mulher Cananéia, que viera daqueles arredores, gritou: “Senhor, Filho de David, tem piedade de mim! Minha filha está cruelmente atormentada pelo demônio”.
Os comentaristas sublinham o carácter inesperado do aparecimento dessa senhora, como também seu profundo respeito pelo Mestre. Por que Mateus quis acentuar ser ela uma “cananéia”? Responde-nos Maldonado: “Crisóstomo notou que o Evangelista precisamente disse que aquela mulher era cananéia para que aparecesse mais admirável sua Fé, dado que os cananeus, na opinião dos judeus, eram os mais ímpios entre os gentios”.
Sobre a virtude dessa mulher, diz a Glosa: “Grande Fé se nota nessas palavras da Cananéia: ela crê na divindade de Cristo quando O chama de ‘Senhor’; e em sua humanidade quando Lhe diz: ‘Filho de Davi’” (7).
Alguns exegetas, tomados de admiração por essa proclamação da Cananéia, chegam a levantar a hipótese de que — nessa altura — ela já tivesse renunciado ao culto idolátrico tão difundido em Tiro e Sidônia. Filha de pais pagãos, rodeada de deuses falsos, quando seus relacionamentos sociais lhe impunham uma visualização errada sobre a religião, ela rompe com todos e abraça a verdadeira Fé. É heróica sua virtude, em meio à corrupção do mundo; seu coração é sincero e reto, isento de maldade e cheio de fervor. Que glória para essa mulher e que lição para os dias de hoje!
Vivemos submersos num pavoroso relativismo, conforme afirmou na Missa Pro Eligendo Romano Pontífice nosso Papa Bento XVI, gloriosamente reinante: “Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decênios, quantas correntes ideológicas, quantos modos de pensamento!… A pequena barca do pensamento de muitos cristãos foi, não raro, agitada por essas ondas, lançada dum extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo, até o ponto de chegar à libertinagem; do coletivismo ao individualismo radical; do ateísmo a um vago misticismo religioso; do agnosticismo ao sincretismo, e por aí adiante. Cada dia surgem novas seitas e realiza-se quanto diz São Paulo acerca do engano dos homens, da astúcia que tende a levar ao erro. Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar ‘aqui e além por qualquer vento de doutrina’, aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades”.
O mundo atual vem fazendo há muito um caminho contrário ao da Cananéia, ou seja, cada vez mais se paganiza e foge do Salvador. No fundo, estamos atravessando a pior crise de Fé já ocorrida na História, mergulhados num laicismo avassalador, verdadeira ameaça e desafio para a Igreja. Começou-se por levar uma vida em oposição ao que se acreditava, para aos poucos ir abolindo inteiramente a própria crença religiosa. Ora, a preciosa virtude da Fé necessita ser manifestada nos atos comuns e frequentes da vida, pois só exercitando-se ela pode se tornar robusta; caso contrário, tende a definhar. E não basta fazê-la consistir apenas em alguns atos e orações.
Esse é o exemplo que nos dá hoje a Cananéia. O foco de seu carinho, afeto e esperança era sua filha, que vinha sofrendo “cruelmente”, fazia tempo, o tormento de uma possessão diabólica. Seu instinto materno se tornava cada dia ainda mais intenso, ao considerar os padecimentos daquela que era carne de sua carne. Uma só era a dor dessas duas criaturas. Por isso, encontrando-se diante do Divino Taumaturgo, ela implora por si e pela filha.
Se ela estivesse influenciada pela mentalidade atéia e materialista de nosso tempo, decerto procuraria exclusivamente meios humanos para solucionar seu problema. Contudo, por sua grande Fé, agiu de forma bem diferente. Já ouvira falar do Filho de Davi o qual, percorrendo a Galiléia, curava todos os enfermos à sua passagem. Até os demônios eram expulsos por Ele. Inúmeras vezes penetrara sua alma o anseio de levar sua pobre filha à presença desse Senhor, ou até mesmo o desejo de ir sozinha à procura d’Ele. Mas a viagem lhe seria em extremo penosa, e talvez impossível, ainda que não levasse a filha consigo. Neste último caso, como deixá-la sem assistência durante um longo período? Impedida pelas circunstâncias de realizar seu sonho, não deixava, porém, de crer no poder do Filho de Davi, crescendo assim na Fé a cada instante. Ele seria o Senhor que concederia à sua filha a felicidade roubada pelo demônio. Ardia no seu coração o desejo de encontrá- lO e por isso rezava a fim de ter essa oportunidade.
Jesus se pusera ao alcance da Cananéia
Por seu lado, Jesus caminhava por aquelas plagas de maneira oculta. Não queria fosse pública sua presença, sobretudo em se tratando de domínios da gentilidade. Entretanto, Ele é a Bondade, e assim como está sempre pronto para ir em busca da ovelha desgarrada, assim também jamais foge de quem Lhe corre atrás. Não terá o Salvador resolvido penetrar nessa região para se colocar ao alcance dessa mulher tão valente na Fé?
Vemos um proceder muito característico de Jesus nesta cena. Retira-se do meio do povo eleito para tranquilizá-lo, tal qual o faz em muitas ocasiões com as almas preguiçosas, tíbias ou indiferentes. Em contrapartida, passa diante das almas fervorosas e atentas para que elas O descubram e assim se fixem na Fé, tomando-O como guia. Sim, de maneira inopinada e inimaginável, Jesus estava de passagem por regiões proibidas para os judeus. Só uma Fé incomum seria capaz de descobrir aquele Deus escondido, indo prostrar-se a seus pés e gritar por clemência.
Outro exemplo nos dá a Cananéia: com que sofreguidão se põe em busca do Filho de Davi, assim que ouve um minúsculo boato a respeito de sua presença ali. Bem diferente pode ser nossa Fé. Será que não nos custa abandonar nossas comodidades para ir ao encontro de Jesus, seja numa Celebração Eucarística, seja diante de um Tabernáculo? Não teremos recebido convites interiores de conversão e deixado passar as oportunidades por causa de injustificáveis e maléficas dilações? Quantos de nós, bem ao contrário da Cananéia, chegamos até a hora da morte inteiramente escravizados ao demônio, correndo o risco de permanecer eternamente no inferno!
Eram muito freqüentes, tanto entre os judeus como no meio dos pagãos, os casos de possessão diabólica, sendo as vítimas torturadas, não raras vezes, com terríveis e violentas convulsões. Daí ter a Cananéia se referido a sua filha empregando a expressão: “cruelmente atormentada”. O fato de intervir aos gritos e com insistência é próprio ao modo de ser oriental, além de demonstrar quanto o sofrimento da filha era agudo, constituindo um só com sua própria angústia.

Continua no próximo post.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

A PARÁBOLA DO FERMENTO

33 Disse-lhes outra parábola: “O Reino dos Céus é semelhante ao fermento que uma mulher toma e mistura em três medidas de farinha até que tudo esteja fermentado”.
Certos antigos e conceituados comentaristas julgaram, erroneamente, tratar-se esta parábola de uma repetição da parábola do grão de mostarda. Elas possuem muita afinidade entre si, mas aqui Jesus tem outro objetivo: “até que tudo esteja fermentado”. Não se trata, portanto, da mera união da farinha com o fermento, mas da força e do vigor na capacidade de ação do elemento menor sobre o maior. Do mesmo modo o Reino dos Céus tem essa intensidade de penetração e transformação das almas, fermentando-as com os ensinamentos evangélicos.
A anterior parábola retrata a capacidade de expansão universal do Reino dos Céus. Esta última mostra o vigor interno que ele possui para influenciar as almas.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Não temais os que matam o corpo

26 Não tenhais medo deles
Jesus envia seus discípulos em missão e profetiza as perseguições que por causa d’Ele sofrerão, conforme relatam os versículos anteriores. Por isso recomenda-lhes confiarem em seus conselhos, como por exemplo, o de serem perseverantes e destemidos na pregação do Evangelho, pois serão amparados e protegidos pelo Pai que está nos Céus, sobretudo no tocante à salvação eterna. Esta será a constante das outras passagens.
27 O que Eu vos digo às escuras, dizei-o às claras e o que vos é dito ao ouvido, pregai-o sobre os telhados
Para melhor entendermos este versículo, devemos nos reportar aos costumes da época.
Aos sábados, dia reservado ao Senhor, todos se reuniam na sinagoga para ouvir a Palavra de Deus. Ao contrário do que se imaginaria, o leitor não apenas lia em voz baixa, como também não se dirigia aos assistentes, mas falava a um intermediário perto dele, o qual, por sua vez, proclamava em alta voz o que ouvia.
Outro costume tinha lugar às sextas-feiras à tarde. O ministro da sinagoga subia ao mais alto teto de uma das casas da cidade e tocava fortemente uma trombeta, advertindo todos os trabalhadores de que era hora de retornarem aos seus lares, pois aproximava-se o repouso sabatino religioso.
O Divino Mestre usou essas figuras da vida comum e corrente naqueles tempos para ilustrar qual devia ser a disposição de alma dos discípulos, ao exercerem o ministério de arautos do Evangelho. E, havendo-as mencionado, torna Jesus a incentivá-los à confiança.
28 Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma. Temei antes Aquele que pode lançar a alma e o corpo na Geena.
Os judeus ortodoxos, contrariamente aos saduceus, acreditavam na imortalidade da alma, e por isso comenta São João Crisóstomo: “Observemos que (Jesus) não lhes promete livrá-los da morte, mas lhes aconselha a desprezá-la, o que é muito mais que livrá-los da morte, e lhes insinua o dogma da imortalidade” (4). Em seguida lhes apresenta duas significativas metáforas, relacionadas com a Providência Divina.
29 Porventura não se vendem dois passarinhos por um asse? E, todavia, nem um só deles cairá no chão sem a permissão de vosso Pai.
O “asse” era a menor moeda usada pelos romanos. Cunhada em bronze, valia a décima sexta parte de um denário. Portanto, além de não ser judaica, tinha valor real insignificante. Dois passarinhos valiam tão pouco que eram vendidos por esse preço irrisório e, no entanto, necessitavam do consentimento do Pai para serem mortos.
30Até os próprios cabelos da vossa cabeça estão todos contados. 31 Não temais, pois. Vós valeis mais que muitos passarinhos.
O objetivo dessas duas comparações feitas por Jesus é ressaltar o grande carinho e cuidado da Providência Divina para com suas criaturas. Se passarinhos e cabelos são tratados com esse cuidado por Deus, quanto mais se preocupará Ele em proteger seus discípulos que estão sendo enviados para pregar sobre o Reino!
Não há razão para temerem as injustiças e perseguições que lhes sobrevierem, conforme exclama Jeremias na primeira leitura de hoje: “O Senhor, porém, está comigo, qual poderoso guerreiro. Por isso, longe de triunfar, serão esmagados meus perseguidores. Sua queda os mergulhará na confusão. Será, então, a vergonha eterna, inesquecível” (Jer 20, 11).
A essa altura, a Liturgia de hoje se encerra trazendo à baila os dois versículos seguintes, a fim de frisar a importância e o valor absoluto do Tribunal do Pai em relação ao dos homens.
32 Todo aquele, portanto, que Me confessar diante dos homens, também Eu o confessarei diante de meu Pai que está nos Céus. Porém, quem Me negar diante dos homens, também Eu o negarei diante de meu Pai que está nos Céus.
São bem conclusivas estas duas promessas de Nosso Senhor, em face da glória futura ou do castigo. Realmente, vale a pena sofrer como São Paulo: “Muitas vezes vi a morte de perto. Cinco vezes recebi dos judeus os quarenta açoites menos um. Três vezes fui flagelado com varas. Uma vez apedrejado. Três vezes naufraguei, uma noite e um dia passei no abismo” (2 Cor 11, 24-25). Muitos outros riscos e dramas são narrados por ele nessa Epístola. E mais adiante relata que ele “foi arrebatado ao Paraíso e lá ouviu palavras inefáveis, que não é lícito a um homem repetir” (2 Cor 12, 4).
III – CONCLUSÃO
Nesse panorama futuro e eterno devem estar fixados os nossos olhos, e não nas delícias fátuas e passageiras desta vida, ainda quando legítimas. Nem falemos do pecado, porque ele terá como consequência imediata a frustração, e o fogo do inferno após a morte.
As dores, angústias e dramas pelos quais passamos durante nossa existência terrena nada são em comparação com o prêmio dos justos, conforme garante São Paulo: “Tenho para mim que os sofrimentos da presente vida não têm proporção alguma com a glória futura que nos deve ser manifestada” (Rm 8, 18).
Resta-nos lembrar o indispensável papel de Maria na nossa salvação. Pois assim como Jesus veio a nós por Maria, é também por meio d’Ela que obteremos as graças necessárias para sermos outros Cristos e alcançarmos a vida eterna.

domingo, 30 de outubro de 2011

O Juízo

“Por justo juízo de Deus, fui condenado!”
O juízo é um assunto tão rico que mesmo uma vasta biblioteca não conseguiria abarcar todas as obras necessárias para abordá-lo de maneira exaustiva. Contudo, para efeitos do presente artigo, vale a pena ilustrá-lo considerando um fato preservado pela tradição da Ordem dos Cartuxos.
Conta a história que seu fundador, São Bruno, resolveu abandonar o mundo e tornar-se monge ao testemunhar espantoso acontecimento passado com um então célebre personagem da Paris do século XI, Raymond Diocrés, doutor em Teologia, professor e considerado pessoa muito virtuosa.
Faleceu ele no ano de 1082. Uma multidão, com destaque para seus alunos, acorrera para velar seu corpo, colocado, conforme o costume da época, num majestoso leito e coberto com um suave véu.
Sob o olhar atento dos presentes, deu-se início ao Ofício de defuntos. Ora, a certa altura, na leitura de uma das lições, é proclamada a pergunta:
“Responde-me: Quão grandes e numerosas são tuas iniqüidades?”
Qual não foi o espanto de todos, ao ouvirem uma voz sepulcral, mas clara, saída de baixo do véu mortuário dizendo:
— Por justo juízo de Deus, fui ACUSADO!
Interrompem o Ofício e levantam o véu, e ali estava o morto gelado e enrijecido, sem o menor sinal de vida.
Recomeçam o Ofício e novamente, ao chegar-se à pergunta acima mencionada, “responde-me”, espanto muito maior: o corpo, antes rígido, desta vez se levanta à vista de todos e, com voz mais sonora e forte, afirma:
— Por justo juízo de Deus, fui JULGADO.
E, logo a seguir, cai sobre o leito.
Numa atmosfera de terror generalizado, os médicos analisaram o cadáver, atestando cuidadosamente a inexistência do menor sopro de vida, inclusive por estarem rígidas as articulações. Não houve clima psicológico para retornarem às orações oficiais, que foram transferidas para o dia seguinte.
A cidade de Paris ferveu de comentários e discussões sobre o caso: uns defendiam a tese de que aquele homem havia sido condenado, e era assim indigno das bênçãos da Igreja; outros afirmavam que todos nós seremos ACUSADOS, e depois, JULGADOS.
O próprio Bispo oficiante foi partidário desta opinião e por isso reiniciou, no dia seguinte, a mesma cerimônia, desta vez ainda mais concorrida, com um público pervadido de extrema apreensão e curiosidade.
Na mesma passagem da quarta leitura de Matinas, o Bispo proclamou:
“Responde-me...” Em meio ao grande suspense, o falecido Raymond Diocrés se levantou e, numa voz aterradora, exclamou:
— Por justo juízo de Deus fui CONDENADO!
E tornou a cair imóvel.
Não havia dúvida, estava desfeito o enorme equívoco sobre sua imerecida reputação e falsa glória. Por ordem das autoridades eclesiásticas, o corpo foi despojado de suas insígnias e lançado em vala comum.
O episódio marcou profundamente aqueles anos e foi esta a razão pela qual Bruno e seus primeiros quatro companheiros, testemunhas oculares do fato, resolveram abandonar o mundo e abraçar a vida religiosa, resultando daí a fundação da Ordem dos Cartuxos.
Dies irae, dies illa...
Por esse ilustrativo acontecimento podemos fazer idéia de quão numerosos serão os equívocos sobre a realidade das consciências e dos juízos de Deus. E só por essa narração já se entenderia melhor a necessidade de um juízo universal.
Em sua sóbria mas eloqüente majestade, a Santa Igreja canta os aspectos terríveis daquele dia, na Seqüência da Missa de “Réquiem”: o “Dies Irae”. Mozart dizia estar disposto a trocar a honra que todas as suas obras lhe granjearam, pela autoria desse único moteto gregoriano.
“O dia da ira, aquele que reduzirá tudo a cinzas... Que terror, quando o Juiz vier para tudo examinar rigorosamente!... Será apresentado o livro que contém tudo pelo qual será julgado o mundo. Quando o Juiz estiver sentado, tudo quanto está oculto será revelado, nada restará impune ...”
Naquele dia, saber-se-á a razão das perseguições, das heresias, dos martírios, das calúnias, das invejas, etc. Será o dia do triunfo da justiça divina, cada um receberá à vista de todos aquilo que merece. Porém, não será um dia marcado por vinte e quatro horas, mas sim eterno. Pelos séculos dos séculos, sem fim, as minúcias do comportamento de cada um dos seres humanos ficará na lembrança dos santos e dos condenados.
Assim, não devemos descuidar de nossa salvação eterna, tal qual nos recomendam doutores e espiritualistas, como Monsabré, de quem encontramos esta cogente advertência: “Comparecereis muito em breve diante do trono de vosso grande Juiz. Ouvireis sair de sua boca uma bênção ou uma maldição? Eu o ignoro. Tudo quanto posso dizer é que necessitais tomar vossas garantias seguindo este conselho do Apóstolo: ‘Com temor e tremor trabalhai por vossa salvação’ (Fil 2,12)”