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segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Comentário ao Evangelho Solenidade da Epifania do Senhor Mt 2, 1-12 Ano C

Continuação dos Comentários ao  Evangelho Solenidade da Epifania do Senhor Mt 2, 1-12 Ano C

Belém, os Magos e Herodes
“Tendo, pois, Jesus nascido em Belém de Judá, no tempo do rei Herodes, eis que Magos vieram do Oriente a Jerusalém”.
Como nos diz São Paulo: “Se a tivessem conhecido [a misteriosa sabedoria de Deus], nunca teriam crucificado o Senhor da glória” (I Cor 2, 8). Não era dos desígnios de Deus que o nascimento de Jesus Menino fosse manifestado a toda a humanidade, pois isso provavelmente impediria que se realizasse a Redenção. Por outro lado, se Sua vinda ao mundo fosse acompanhada por sinais fulgurantes e grandiosos, seriam anulados os méritos da fé.
O nascimento, sinal prévio da segunda e plena manifestação
Por estes e outros motivos, nos explica São Tomás de Aquino: “É inerente à ordem da sabedoria divina que os dons de Deus e os segredos de sua sabedoria não cheguem da mesma forma a todos, mas que cheguem imediatamente a alguns e, por meio deles, se estendam aos outros. Assim, no que concerne ao mistério da Ressurreição, diz o livro dos Atos: ‘Deus ressuscitou Cristo ao terceiro dia e Lhe concedeu manifestar a sua presença, não ao povo em geral, mas às testemunhas designadas de antemão por Deus’. O mesmo devia ser observado em relação a Seu nascimento: que Cristo não Se manifestasse a todos, mas a alguns, por meio dos quais poderia chegar aos outros”.3
Várias também são as razões pelas quais a Providência Divina escolheu primeiro os judeus, e só depois os gentios, para manifestar o nascimento de Jesus. Claro está que tendo Deus um especial apreço pelo princípio de hierarquia, deveria preferir iniciar Sua grande obra pelo Povo Eleito. Daí continuar a discorrer sobre esse pormenor o mesmo Doutor Angélico:
“A manifestação do nascimento de Cristo foi uma antecipação da manifestação plena que haveria de vir. E assim como na segunda manifestação a graça de Cristo foi anunciada por Cristo e por Seus Apóstolos, primeiro aos judeus, e depois aos pagãos, assim também, os primeiros a aproximar-se de Cristo foram os pastores, que eram as primícias dos judeus e estavam perto; depois vieram os Magos, de longe, como ‘primícias dos pagãos’, na expressão de Agostinho”.
Considerações e profecias
Quanto à referência à cidade de Belém de Judá neste versículo, devemos considerar a afirmação feita pelo próprio Salvador, décadas mais tarde: “Eu sou o pão vivo que desceu do Céu” (Jo 6, 41). Por isso fazem os comentaristas uma aproximação entre o significado do nome Belém — ou seja, “casa do pão” — e a instituição do Sacramento da Eucaristia, Pão dos Anjos. Havia uma outra Belém, ao norte, na terra de Zabulon, daí procurar o Evangelista especificar a tribo de Judá.
O rei Herodes, na realidade, não pertencia à raça dos judeus, pois era idumeu. Chegou ao trono por apoio dos romanos, devido a lhe serem contrários os judeus, por se tratar de um estrangeiro. Foi muito habilidoso, restaurando com esmero o Templo de Jerusalém, no intuito de que se esquecessem de suas origens. Porém, sua fama perpetuou-se pelas grandes máculas de seus costumes dissolutos e de sua crueldade.
Sobre este particular, pondera Teodoro de Mopsuéstia: “O patriarca Jacó havia já discernido com exatidão esse momento, ao dizer: ‘Não se apartará o cetro de Judá, nem o bastão de comando dentre seus pés, até que venha aquele a quem pertence por direito, e a quem devem obediência os povos’ (Gn 49, 10). Mateus apresenta esses dados para, por meio deles, pôr em evidência que tudo estava correndo de acordo com as palavras proféticas. Por um lado, o profeta tinha dito que nasceria em Belém (cf. Mq 5, 1); por outro, o fato de ocorrer isso no tempo de Herodes cumpria, ademais, a predição de Jacó. Primeiro reinou sobre eles a estirpe de Davi, da tribo de Judá, irmão de Levi, mas a descendência provinha da estirpe de Judá, que se mesclara com a tribo levítica, especialmente com sumos sacerdotes, e tinham prerrogativas reais. Em seguida — depois que os irmãos Aristóbulo e Hircano disputaram entre si o poder — a dignidade real passou finalmente para Herodes, o qual não era judeu de raça, por ser filho de Antípatro, o idumeu. Foi então, no tempo desse reinado, que apareceu Cristo Senhor, não havendo mais reis e governantes do povo judeu”.5
Mateus se cala sobre maiores detalhes a respeito dos Magos; daí a multiplicidade de hipóteses e a não pouca divergência entre os autores sobre este particular. Entretanto, podemos afirmar que o nome Magos não deve ser tomado com as conotações próprias aos nossos tempos. Naquela época, significava pessoas de certo poder e muito distintas, em especial pelos conhecimentos científicos, sobretudo de astronomia. Além disso, a tradição no-los apresenta como reis. É também por tradição que consta serem três, terem sido batizados mais tarde por São Tomé Apóstolo e, tempos depois, martirizados.

Sobre o país de origem — Caldeia, Arábia ou Pérsia —, o que consta são puras hipóteses; como também quanto ao momento da chegada deles a Jerusalém e a Belém, que parece ter-se dado depois da Apresentação do Menino Jesus.
O certo e admitido por todos é que, sendo a Redenção de âmbito universal, deveria ser anunciada a todos.6

Continua no próximo post.

Comentário ao Evangelho Solenidade da Epifania do Senhor Ano C

Comentário ao Evangelho Solenidade da Epifania do Senhor Mt 2, 1-12 Ano C

1“Tendo, pois, Jesus nascido em Belém de Judá, no tempo do rei Herodes, eis que magos vieram do Oriente a Jerusalém. Perguntaram eles: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a Sua estrela no Oriente e viemos adorá-Lo’. Ouvindo isto, o rei Herodes ficou perturbado e toda Jerusalém com ele. Convocou os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo e indagou deles onde havia de nascer o Cristo. Disseram-lhe: ‘Em Belém, na Judeia, porque assim foi escrito pelo profeta:
E tu, Belém, terra de Judá, não és de modo algum a menor entre as cidades de Judá, porque de ti sairá o chefe que governará Israel, meu povo”. Herodes, então, chamou secretamente os magos e perguntou-lhes sobre a época exata em que o astro lhes tinha aparecido. E, enviando-os a Belém, disse: ‘Ide e informai-vos bem a respeito do Menino. Quando O tiverdes encontrado, comunicai-me, para que eu também vá adorá-Lo’. Tendo eles ouvido as palavras do rei, partiram. E eis que a estrela, que tinham visto no Oriente, os foi precedendo até chegar sobre o lugar onde estava o Menino, e ali parou. A aparição daquela estrela os encheu de profunda alegria. Entrando na casa, acharam o Menino com Maria, Sua mãe. Prostrando-se diante dEle, O adoraram. Depois, abrindo seus tesouros, ofereceram-Lhe como presentes: ouro, incenso e mirra.
12Avisados em sonhos de não tornarem a Herodes, voltaram para sua terra por outro caminho” (Mt 2, 1-12).

Diante do Rei, os bons reis e o mau
Na longa viagem empreendida pelos Magos, nada há de razões profanas ou mundanas. E, diante de um tirano de má fama como Herodes, é comovedora sua confiança penetrada de coragem. Sem dúvida, estavam sustentados por uma especial moção do Espírito Santo.
Natal e Epifania
A festa da Epifania — também denominada pelos gregos de Teofania, ou seja, manifestação de Deus — era celebrada no Oriente já antes do século IV. É uma das mais antigas comemorações cristãs, bem como a Ressurreição de Nosso Senhor.
Não nos devemos esquecer que a Encarnação do Verbo se tornou efetiva logo após a Anunciação do Anjo; entretanto, apenas Maria, Isabel, José e, provavelmente, Zacarias tiveram conhecimento do grande mistério operado pelo Espírito Santo. O restante da humanidade não se deu conta do que se passava no período de gestação do Filho de Deus humanado. A Revelação feita pelos Profetas era envolta em certo mistério que só após o testemunho dos Apóstolos se tornou evidente.
A Liturgia do Tempo do Advento
Nas quatro semanas do Advento, a Liturgia nos recorda as profecias sobre os principais fatos ligados às manifestações graduais e sucessivas do Salvador e da Boa Nova trazida à Terra. Com muita ênfase é sublinhado o texto de Isaías: “Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e o chamará ‘Deus Conosco’” (Is 7, 14). Fica patente que o Messias pertenceria à nobre estirpe de Davi: “Um renovo sairá do tronco de Jessé, e um rebento brotará de suas raízes. Sobre ele repousará o Espírito do Senhor, Espírito de sabedoria e de entendimento, Espírito de prudência e de coragem, Espírito de ciência e de temor ao Senhor” (Is 11, 1-2).
A Liturgia vai num crescendo a ponto de tornar claro que vem o Salvador das nações, por isso roga que a terra O germine: “Rorate cæli desuper et nubes pluant iustum, aperiatur terra et germinet salvatorem et iustitia oriatur simul!” — “Que os céus, das alturas, derramem o seu orvalho, que as nuvens façam chover a vitória; abra-se a terra e brote a felicidade, e ao mesmo tempo faça germinar a justiça!” (Is 45, 8).
Por fim, nasce o Redentor, como um simples bebê. Quem estivesse, porém, tomado por um dom do Espírito Santo, discerniria naquela adorável criança os resplendores dos raios de sua fulgurante divindade. Não se tratava de um ente puramente humano; àquela natureza se unia a própria Divindade na hipóstase da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Ali estava o Homem-Deus.
Epifania: público reconhecimento da divindade do Menino Jesus
Se, por assim dizer, no Natal Deus Se manifesta como Homem, na Epifania esse mesmo Homem se revela como Deus. Assim, nestas duas festas, quis Deus que o grande mistério da Encarnação fosse revelado com todo o brilho, tanto aos judeus como aos gentios, dado o seu caráter universal. No Ocidente, desde o princípio, celebrava-se o Natal a 25 de dezembro, e no Oriente, a Epifania a 6 de janeiro. Foi a Igreja de Antioquia, na época de São João Crisóstomo, que passou a comemorar as duas datas. Só a partir do século V é que no Ocidente começou a se celebrar a segunda festividade.
Em nossa atual fase histórica, a Liturgia comemora a Adoração dos Reis Magos ao Menino Jesus. Por outro lado, ainda permanecem alguns vestígios da antiga tradição oriental que incluía na Epifania, além da Adoração dos Reis, o milagre das Bodas de Caná e o Batismo do Senhor no Jordão. Hoje, em nossa Liturgia, as Bodas de Caná não são mais celebradas, e o Batismo do Senhor é festejado no domingo entre os dias 7 e 13 de janeiro.
Em síntese, podemos afirmar que a Epifania, ou seja, a manifestação do Verbo Encarnado, não pode ser considerada desligada da adoração que Lhe prestaram os Reis do Oriente. Nesta cena está concernido um público reconhecimento da divindade do Menino Jesus unida à Sua humanidade.
A virtude de Religião
A adoração, segundo nos ensina o Doutor Angélico, “orienta-se à reverência daquele que é adorado”. Trata-se de uma virtude especial, chamada de religião, à qual “é próprio prestar reverência a Deus”.1 Para melhor entendermos, basta dizer que a religião tem seu fundamento em quem é Deus e o que somos nós; naquilo que Ele nos deu e no que Lhe devemos restituir. Deus é o ser por essência, a Perfeição, o Bem, a Verdade e a Beleza, ademais, absoluto e infinito; e nós, pelo contrário, somos criaturas contingentes: d’Ele recebemos tudo e, em nossa existência, necessitamos de Sua sustentação a cada instante. Bem dizia o Revmo. Padre Antonio Royo Marín, OP, que se, por absurdo, Deus chegasse a cochilar, todas as criaturas retornariam ao nada; ao que o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira respondeu: “E, em Sua onipotência, Ele recriaria tudo novamente, logo ao despertar”. Portanto, o ser de toda e qualquer criatura é conferido por Deus, assim como os mais variados bens que haja em toda a ordem do universo. Na linha dos dons nada há, portanto, que não recebamos de Deus. Somos os eternos devedores do Criador. Debaixo deste ponto de vista, até a mais excelsa de todas as criaturas, Maria Santíssima, também o é, e Ela soube reconhecer isto em seu cântico diante de sua prima Santa Isabel: “Minha alma glorifica ao Senhor [...] porque olhou o nada [a humildade] de Sua serva” (Lc 1, 46.48).
A virtude de religião é a essência da adoração que se concentra no reconhecimento destas duas realidades: quem é Deus, quais Seus direitos e benefícios; quem somos nós, nossa indigência, nosso nada. Por isso, “a religião é a principal entre as virtudes morais” — explica-nos São Tomás de Aquino —, porque “está mais próxima de Deus que as outras virtudes morais, enquanto suas ações diretas e imediatamente ordenam-se para a honra divina. Consequentemente, a religião é superior às outras virtudes morais”.2

Um convite a sermos gratos ao Senhor
Ora, o que movia o fundo da alma dos Reis Magos era o desejo de prestar culto de adoração Àquele que acabara de nascer. O significado da moção do Espírito Santo, levando-os a Belém, cifra-se no chamado universal de todas as nações à salvação e à participação nos bens da Redenção.
Se bem que os Profetas houvessem feito previsões sobre a universalidade dessa vocação, os judeus consideravam-na como um privilégio exclusivo do Povo Eleito. É curioso notar como o próprio Senhor em Sua vida pública, apesar de elogiar a fé do centurião romano — “Em verdade vos digo: não encontrei semelhante fé em ninguém de Israel” (Mt 8, 10) —, afirma não ter sido enviado pelo Pai senão para cuidar das “ovelhas dispersas da casa de Israel” (Mt 15, 24). Ou seja, não quis Ele chamar diretamente a gentilidade; essa tarefa seria reservada aos Apóstolos, em especial a São Paulo. Mas, com décadas de antecedência, os Santos Reis simbolizaram junto ao berço do Salvador esse Seu grande desejo de nos redimir também a nós todos da gentilidade, conforme as palavras da Oração do Dia: “Ó Deus, que hoje revelastes o Vosso Filho às nações, guiando-as pela estrela”; e mais claramente no Prefácio: “Revelastes, hoje, o mistério de Vosso Filho como luz para iluminar todos os povos no caminho da Salvação”.
Se aos Reis Magos Deus os chamou por meio da estrela, a nós Ele nos chama através de Sua Igreja, com sua pregação, doutrina, governo e Liturgia. Logo, a Epifania é a festa que nos convida a agradecermos ao Senhor, como também a Lhe implorar a graça de sermos guiados sempre e por toda parte através de Sua luz celeste, bem como de acolhermos com fé e vivermos com amor todos os dons que a Santa Igreja nos dá.
Continua no próximo post.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Evangelho do Domingo da Sagrada Família Ano C Lc 2, 41-52

Continuação dos comentários ao Evangelho do Domingo da Sagrada Família Ano C  Lc 2, 41-52
A Sagrada Família cumpre o preceito
41“Os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa. 42 Quando Ele completou doze anos, subiram para a festa, como de costume”.
Três eram as festas — Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos — nas quais os varões judeus tinham o dever de comparecer ao Templo.7 Tendo Jesus completado os doze anos, era obrigado também a fazê-lo, pois, como lembra Fillion, ao atingir essa idade todo jovem israelita se tornava “‘filho do preceito’ ou ‘filho da Lei’, quer dizer, sujeito a todas as prescrições da Lei mosaica, mesmo as mais onerosas, como o jejum e as peregrinações ao Templo”.8
De Nazaré a Jerusalém são vários dias de viagem, feita em comitiva, em caravanas, com as estradas apinhadas pelos que iam cumprir o preceito nessas datas. Era costume os peregrinos passarem uma semana em Jerusalém. Assim, segundo descrições feitas por autores da época, como Flávio Josefo, a cidade se tornava intransitável, superlotada de gente por todos os cantos.9
Dirigiu-Se Jesus à Casa de Deus para prestar culto ao Pai. Que magnífica manifestação de amor à hierarquia, que sublime relacionamento entre as Pessoas da Santíssima Trindade! Quanta alegria teria sentido o Filho do Homem ao cumprir esse preceito da Lei mosaica, por ocasião da festa da Páscoa! E vendo o cordeiro, símbolo de Si mesmo, sendo oferecido ao Pai no Templo, deve ter considerado como, ao redimir o gênero humano pelo sacrifício cruento na Cruz, Ele tornaria realidade essa imolação simbólica.
Muito provavelmente caminhou por Jerusalém e fitou com olhos humanos os lugares nos quais Ele iria padecer, e teve um arroubo de amor semelhante àquele “desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco” (Lc 22, 15) que mais tarde manifestaria na Santa Ceia. E Nossa Senhora não O terá acompanhado nesse percurso? Terão discorrido sobre a Paixão? Ignorados pelos homens, eram, contudo, espetáculo para os Anjos do Céu.
Jesus não lhes deu nenhuma explicação
43“Passados os dias da Páscoa, começaram a viagem de volta, mas o Menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o notassem”.
Costumavam os judeus, durante essas viagens, formar duas comitivas, uma de mulheres e outra de homens, e as crianças caminhavam ora com o pai, ora com a mãe. E à noite, pai, mãe e filhos se juntavam para o jantar e algum tempo de convívio antes de cada qual ir descansar.
Assim deve ter sido a vinda para Jerusalém e seria também a viagem de retorno, com a inevitável confusão própria à partida de uma caravana que sai de uma cidade superlotada. Isso explica o fato de que somente no final do primeiro dia, ao se encontrar com São José, Nossa Senhora deu-Se conta do desaparecimento do Menino. Começaram, então, aflitos, a buscá-Lo entre os parentes e conhecidos. Em vão!
Aflição de Maria e José
44“Pensando que Ele estivesse na caravana, caminharam um dia inteiro. Depois começaram a procurá-Lo entre os parentes e conhecidos. 45 Não O tendo encontrado, voltaram para Jerusalém à sua procura”.
Podemos bem calcular a grande dor de Maria e José, atônitos diante desse fato, para o qual não encontravam explicação.
Sabiam que o Messias deveria ensinar toda a Sua doutrina e depois seria condenado à morte. Isto os deixava receosos, como afirma a Glosa, de que “aquilo que Herodes tentara levar a cabo em sua primeira infância, agora, encontrando uma ocasião oportuna, o fizessem outros, matando-O nessa idade”.10 Procuravam-No, então, pelo caminho — com que angústia! —, temendo achá-Lo morto.
Ao sofrimento da dúvida sobre a causa do desaparecimento de Jesus, somava-se o da incerteza sobre a ocasião. Como fora acontecer agora? Transida de dor, Nossa Senhora certamente Se lembrava da profecia de Simeão: “Uma espada transpassará a tua alma” (Lc 2, 35).
Preocupação, aflição e angústia, sim, mas numa superior paz de alma. Maria Santíssima talvez Se poria o problema de ser Ela a culpada pelo acontecido, por alguma falta de amor a Deus. A separação do Seu adorável Filho seria, nesse caso, uma divina repreensão. Daí estar Ela na aflição das aflições e sentir no coração a espada de dor! Ela e José talvez julgassem não terem sido dignos da guarda daquele Tesouro, de não terem correspondido à missão que receberam. E isso os deixava em grande desolação.
Nosso Senhor é ávido por dar testemunho
46“Três dias depois, O encontraram no Templo. Estava sentado no meio dos mestres, escutando e fazendo perguntas. 47Todos os que ouviam o Menino estavam maravilhados com sua inteligência e respostas”.
Constatada a perda de Jesus, Nossa Senhora e São José tiveram de aguardar até o amanhecer para empreender a viagem de volta. Quando chegaram a Jerusalém, anoitecera já novamente; e, assim, só no terceiro dia puderam ir ao Templo. Bem sabia Ela que era esse o lugar mais provável onde achar o Filho.
Quando afinal O encontraram, a Virgem Mãe e São José, absortos pelo sofrimento, nem se deram conta da admiração causada pelo Menino Jesus aos doutores — “maravilhados com sua inteligência e respostas” —, como ressalta o grande exegeta Lagrange: “A aprovação dos doutores seria de molde a lisonjear os pais, e sobretudo teria dado ocasião à doce complacência de uma mãe; mas Maria estava assumida pela dor e tomada de surpresa”.11
Diante dos mestres da Lei, o Menino Jesus estava dando testemunho de Sua missão, dezoito anos antes de iniciar Sua vida pública, conforme comenta São Beda: “Para provar que era Deus, respondia-lhes de uma maneira sublime quando O interrogavam”.12 Agindo assim, estava ajudando aquelas pessoas a se aperceberem de que chegara a hora do Messias e da libertação do povo judeu. Libertação, não do domínio romano, mas espiritual, em ordem à salvação eterna: as portas do Céu iriam ser abertas!
Maria pergunta com admiração
48“Ao vê-Lo, seus pais ficaram muito admirados e sua Mãe Lhe disse: ‘Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e Eu estávamos, angustiados, à tua procura’”.
A admiração de que nos fala este versículo pode ser entendida em dois sentidos. Primeiro no sentido explicitado por São Tomás de Aquino: estavam eles, em meio aos efeitos, à procura da causa, da razão.13 Segundo, ficaram admirados ao encontrar o Menino cumprindo Sua missão em tão tenra idade e presenciar a manifestação que Ele dava de Si mesmo.
Maria e José dão-nos aqui exemplo de como devemos nos comportar quando a graça sensível se afastar de nós. Antes de tudo, evitar qualquer atitude de revolta; se aconteceu, foi porque Deus quis. São os percalços da vida, os dramas, as dificuldades que a Providência permite para unir-nos mais a Ela. Aceitemos tudo com o mesmo estado de espírito dos pais de Jesus. E quando revirmos Nosso Senhor, teremos também admiração.
Na pergunta feita por Nossa Senhora, não se nota uma manifestação de queixa. Com sua retíssima consciência, Ela demonstra aflição e perplexidade, desejando uma explicação para, assim, melhor servir a Deus. Essa deve ser também nossa atitude, resignada e amorosa, face aos problemas que se nos deparam ao longo da vida.
Resposta segundo a natureza divina
49“Jesus respondeu: ‘Por que Me procuráveis? Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai?’”.
Em sua pergunta, na qual transparece bem a preocupação de mãe em relação ao filho, a Virgem Maria toma em consideração a natureza humana de Jesus. E Ele, respondendo por meio de outra pergunta chama a atenção para a Sua natureza divina.
Por essa resposta — a qual, segundo Fillion, constituía “o programa de todo o seu ministério”14 —, podemos conjecturar ter o Menino Jesus instruído Nossa Senhora a respeito de como Ele deveria cumprir a vontade do Pai. E de como esse chamado divino superava qualquer laço de sangue. Ele quis dizer a seus pais terrenos que Sua missão divina estava acima dos vínculos familiares.
Mas, com isso, estaria Ele reprovando Maria e José porque se colocaram como seus pais? São Beda faz um inspirado comentário: “Não os repreende porque O buscam como filho, mas os faz levantar os olhos da alma para verem o que Ele deve Àquele de quem é Filho eterno”.15 Jesus Cristo tinha uma missão a cumprir e queria que seus pais terrenos compreendessem que tudo devia se subordinar ao Pai Celeste.
O exemplo de Maria diante do não entender
50 “Eles, porém, não compreenderam as palavras que lhes dissera”.
Por que Nossa Senhora e São José não entenderam? Deus não lhes deu luzes para isso naquele momento, a fim de que pudessem ter maior mérito, compreendendo só mais tarde as razões do comportamento do Menino Jesus.
Maria não entendeu as palavras de seu Filho, mas, como se vê no versículo seguinte, conservava no seu coração “todas essas coisas”, com amor, sabendo que havia uma lição por do desse episódio.
Essa deve ser nossa atitude em relação a tudo quanto nos transcende e que porventura não consigamos entender em nossa vida espiritual: com paz e confiança, guardar os acontecimentos no coração e refletir sobre eles ao longo do tempo, lembrando-nos da promessa de Nosso Senhor: “O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai vos enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos lembrará tudo o que vos tenho dito” (Jo 14, 26). Mais cedo ou mais tarde, o Espírito Santo nos fará compreender, na medida que isso for útil para nossa santificação e o cumprimento de nossa missão.
Neste episódio, ensina-nos também o Divino Mestre que, por vezes, até nossos parentes podem não entender alguma atitude nossa, de firme decisão de cumprir um dever moral ou religioso. Portanto, se isso acontecer, não nos surpreendamos.
O imenso valor do recolhimento
51“Jesus desceu então com seus pais para Nazaré, e era-lhes obediente. Sua mãe, porém, conservava no coração todas essas coisas”.
Visando provavelmente evitar a interpretação errônea de que, para obedecer ao Pai Eterno, é preciso desobedecer aos pais terrenos, São Lucas, com muita delicadeza, lembra logo a seguir que Nosso Senhor passou o resto da vida submisso a Maria e José. Pois, como afirma São Beda: “O que haveria de fazer o Mestre da virtude, senão cumprir esse dever de piedade? O que haveria de fazer entre nós senão aquilo mesmo que desejava que fizéssemos?”.16
Portanto, Ele aceitou que O levassem novamente para Nazaré e continuou a ser-lhes obediente até o início de Sua vida pública, quase duas décadas depois.
O que significaria esse longo período de vida oculta? Bem pode exprimir ele o imenso valor do recolhimento. Jesus, evidentemente, já estava preparado para cumprir a vontade do Pai. Entretanto, depois de afirmar que veio cumprir essa vontade, Ele segue Nossa Senhora e São José, e fica mais dezoito anos na vida oculta e recolhida.
Não esqueçamos, também nós, que o recolhimento, a contemplação e o isolamento são excelentes meios de nos prepararmos para executar bem nossas ações. Nunca houve uma comunidade contemplativa excelsa como a de Nazaré: Jesus, Maria e José! Impossível imaginar algo superior. É por isso que, como lembra o grande teólogo padre Antonio Royo Marín, “alguns Santos Padres se comprazem em dizer que a principal ocupação de Jesus em Nazaré foi a doce tarefa de santificar cada vez mais sua queridíssima Mãe, Maria, e seu pai adotivo, São José. Nada mais sublime, e mais lógico e natural”.17
Crescimento em sabedoria, estatura e graça
52 “E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens”.

Santo Agostinho, São Tomás e a generalidade dos teólogos afirmam que Jesus possuía em grau supremo, desde o primeiro instante de sua concepção, a graça, a sabedoria e a santidade.18 E não só as possuía, mas era em substância a Graça, a Sabedoria e a própria Santidade.
No entanto, Ele crescia fisicamente, de ano em ano, tomando configuração de adulto, “mas sem exceder exteriormente as leis gerais do desenvolvimento humano”, sublinha Fillion.19 De acordo com a idade, ia Ele manifestando mais a Graça e a Sabedoria. Não Se tornava maior em substância, mas sim em manifestação. Isso, segundo o Doutor Angélico, porque “à medida que avançava em idade, fazia obras mais perfeitas para demonstrar que era verdadeiro homem, tanto no referente a Deus como no tocante aos homens”.20
Oração e doutrina
Que aplicação tem esta passagem do Evangelho para nossa vida espiritual?
Há momentos de nossa existência nos quais temos a sensação de ter “perdido o Menino Jesus”, isto é, com ou sem culpa nossa, a consolação espiritual desaparece e nos sentimos desamparados. O que fazer quando percebemos que estamos sem graças sensíveis, sem aquilo que nos dava ânimo e sustentação para praticar a virtude?
Esta passagem do Evangelho ensina-nos a imitar Maria e José: ir atrás do Menino Jesus, isto é, pôr-se à procura da graça sensível, quando ela se retirar. Quando estivermos aflitos, na aridez, devemos procurar Jesus no Santíssimo Sacramento. Não há nada, absolutamente nada do necessário para nossa santificação que, se pedirmos a Jesus Eucarístico, não acabemos por obter.
Contudo, não nos esqueçamos de que, no Templo, Nosso Senhor estava entre os mestres da Lei, o que bem pode significar a importância da doutrina para nos sustentar na hora da provação. Daí decorre para nós a necessidade de uma boa e sólida formação doutrinária.
Como quem vai fazer uma longa viagem providencia com antecedência documentos, roupas apropriadas e tudo o mais, assim precisamos fazer nós: rezar muito e conhecer bem a doutrina, a fim de estarmos preparados para atravessar os períodos de aridez. Se tivermos os princípios bem vincados na alma, quando bater o vento da provação, as folhas estarão firmes na árvore da Fé.

8 Cf. apud TUYA, OP, Pe. Manuel de. Biblia Comentada – V Evangelios. Madrid: BAC, 1954, p. 781.

9 Cf. Idem, ibidem.
10 Apud AQUINO, SantoTomás de. Op. cit., p. 71.
11 LAGRANGE, OP, Pe. JosephM. Vida de Jesucristo según los Evangelios. Madrid: Edibesa, 1999, p. 52.
12 BEDA, San. Apud AQUINO, Santo Tomás de. Op. cit., p. 70.
13 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, I-II, q. 32, a. 8, Resp.: “A admiração é um certo desejo de saber, que surge no homem porque vê o efeito e ignora a causa”.
14 FILLION, Louis-Claude. Nuestro Señor Jesucristo según los Evangelios. Madrid: Edibesa, 2000, p. 88.
15 BEDA, San. Apud AQUINO, Santo Tomás de. Op. cit., p. 71.
16 Idem, p. 72.
17 ROYO MARÍN, OP, Pe. Antonio. Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: BAC, 1961, p. 274.
18 Cf. por exemplo: SANTO AGOSTINHO, In Sermone LVII, de diversis; Tract. 108 in Ioan., n. 5; De trinitate, I, 15, c. 26, n. 4; AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 7, a. 12.
19 FILLION. Op. cit., p. 86.
20 AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q.7, a.12, ad 3.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Comentário ao Evangelho Domingo da Sagrada Família Lc 2, 41-52 Ano C


41 “Os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém, para a festa da Páscoa. 42 Quando Ele completou doze anos, subiram para a festa, como de costume. 43
Passados os dias da Páscoa, começaram a viagem de volta, mas o Menino Jesus ficou em Jerusalém, sem que seus pais o notassem. 44Pensando que Ele estivesse na caravana, caminharam um dia inteiro. Depois começaram a procurá-Lo entre os parentes e conhecidos. 45 Não O tendo encontrado, voltaram para Jerusalém à sua procura.
46 Três dias depois, O encontraram no Templo. Estava sentado no meio dos mestres, escutando e fazendo perguntas. 47 Todos os que ouviam o Menino estavam maravilhados com sua inteligência e respostas. 48 Ao vê-Lo, seus pais ficaram muito admirados e sua mãe Lhe disse: ‘Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e Eu estávamos angustiados, à tua procura’. 49 Jesus respondeu: ‘Por que Me procuráveis? Não sabeis que devo estar na casa de meu Pai?’. 50 Eles, porém, não compreenderam as palavras que Lhes dissera. 51 Jesus desceu então com seus pais para Nazaré, e era-Lhes obediente. Sua Mãe, porém, conservava no coração todas essas coisas. 52 E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e diante dos homens (Lc 2, 41-52).
Comentário ao Evangelho Domingo da Sagrada Família Lc 2, 41-52
Como encontrar Jesus na aridez?
Há momentos de nossa vida espiritual em que também nós “perdemos o Menino Jesus”. Ou seja, com ou sem culpa, a graça sensível pode desaparecer. Para reencontrá-Lo, devemos procura-Lo por meio da oração e dos seus ensinamentos.
O paradoxo da Sagrada Família
Uma bela metáfora oriental, relatada pelo presbítero Hesíquio de Jerusalém (séc. V), narra que a Santíssima Trindade estaria num verdadeiro impasse, por serem as três Pessoas totalmente iguais. E seria preciso haver algum acontecimento pelo qual o Pai pudesse ser louvado enquanto pai, o Filho ser inteiramente filho, e o Espírito Santo dar mais ainda do que já havia dado. Nessa dificuldade, a solução teria surgido no momento em que Nossa Senhora aceitou a encarnação do Verbo em seu virginal corpo, tornando-Se, deste modo, o “complemento da Santíssima Trindade”.1
Para a realização de tão grande mistério, “Deus Pai transmitiu a Maria sua fecundidade, na medida em que a podia receber uma simples criatura, para que Ela pudesse produzir o seu Filho e todos os membros de seu Corpo Místico”, afirma o grande São Luís Grignion de Montfort.2 E o “Espírito Santo, que era estéril em Deus, isto é, não produzia outra pessoa divina, tornou-Se fecundo em Maria. É com Ela, n’Ela e d’Ela que Ele produziu sua obra prima, um Deus feito homem, e que produz todos os dias, até o fim do mundo, os predestinados e os membros do corpo deste Chefe adorável”.3
Assim, o Filho Se teria feito Homem não só para nos redimir, mas também para, com toda propriedade, poder chamar de pai a Primeira Pessoa Divina. Pois faria isto de dentro da natureza humana, inteiramente como filho e devedor, porque, como homem, deveria a Ele sua existência e, portanto, teria obrigação de restituir-Lhe o que dEle recebeu.
Eis o motivo pelo qual, segundo Hesíquio, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade aniquilou-Se a Si mesma, fazendo-Se semelhante aos homens (cf. Fl 2, 7), e operou, de dentro da natureza humana, a nossa Redenção. Qual novo Adão no Paraíso Terrestre, “encontrou sua liberdade em Se ver aprisionado no seio da Virgem Mãe”.4
Quem é mais, manda menos
À primeira vista, a constituição da Sagrada Família é um mistério. Pois nela quem tem mais autoridade é São José, como patriarca e pai, com direito sobre a esposa e sobre o fruto de suas puríssimas entranhas.
A esposa é Mãe de Deus, Mãe da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Sendo Mãe, tem Ela poder sobre um Deus que Se encarnou em Seu seio virginal e Se fez seu filho.
Nosso Senhor Jesus Cristo, como filho, deve obediência a esse pai adotivo, aceitando em tudo a orientação e a formação dada por José; e também à sua Mãe, criatura Sua. Que imenso, insondável e sublime paradoxo!
Assim, na ordem natural, José é o chefe; Maria, a esposa e mãe; e Jesus, a criança. Porém, na ordem sobrenatural, o Menino é o Criador e Redentor; Ela, a Medianeira de todas as graças, Rainha do Céu e da Terra; e José, o Patriarca da Igreja. José, o que de si tem menos poder, exerce a autoridade sobre Nossa Senhora, a qual tem a ciência infusa e a plenitude da graça, e sobre o Menino, que é o Autor da graça.
Deus ama a hierarquia
Por que dispôs Deus essa inversão de papéis?
Assim fez para nos dar uma grande lição: Ele ama a hierarquia e deseja que a sociedade humana seja governada por este princípio, do qual o próprio Verbo Encarnado quis dar exemplo.
Bem podemos imaginar, na pequena Nazaré, a prestatividade, a sacralidade e a calma de Jesus, auxiliando José na carpintaria: serrando madeira, pregando as peças de uma cadeira, quando bastaria um simples ato de vontade Seu, para serem imediatamente produzidos, sem necessidade sequer de matéria-prima, os mais esplêndidos móveis, jamais vistos na História.
Entretanto, afirma São Basílio, “obedecendo desde sua infância a seus pais, Se submeteu Jesus humilde e respeitosamente a todo trabalho braçal”.5 Assim, logo que São José mandasse — e com que veneração! — o Filho fazer um trabalho, Este Se punha a executá-lo!
Pois agindo dessa maneira — honrando o pai que estava na terra e aceitando, por exemplo, fazer um móvel de acordo com as regras da natureza — dava Jesus mais glória a Deus Pai, que O havia enviado. Afirma São Luís Grignion, a propósito de sua obediência a Nossa Senhora: “Jesus Cristo deu mais glória a Deus submetendo-Se a Maria durante trinta anos, do que se tivesse convertido toda a terra pela realização dos mais estupendos milagres”.6
Assim, temos dentro da própria Sagrada Família um impressionante princípio de amor à hierarquia, porque, uma vez que Jesus havia desejado nascer e viver numa família, Ele honrava pai e mãe, mesmo sendo onipotente e o Criador de ambos.
Uma vida de aparência normal
Não devemos supor que na Sagrada Família tudo era absolutamente místico, sobrenatural e pleno de consolações.
Do Menino Jesus não se pode dizer que vivia de fé porque sua alma estava na visão beatífica. Entretanto, quis que seu corpo tivesse o desenvolvimento normal de um ser humano. Assim, por exemplo, não nasceu falando, embora pudesse falar todas as línguas do mundo.
Nossa Senhora e São José levavam também uma vida inteiramente comum na aparência e, como todos os homens, sofreram perplexidades e angústias. Disto nos dá um exemplo o Evangelho deste domingo: “Teu pai e Eu estávamos, angustiados, à tua procura”.
Verdadeiro Deus e verdadeiro homem
A descrição de São Lucas é a mais minuciosa apresentada pelos Evangelhos a respeito dos trinta anos de vida oculta de Nosso Senhor, junto aos pais, o que leva a supor que o episódio lhe tenha sido relatado pela própria Nossa Senhora.
Continua no próximo post

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Comentário ao Evangelho – Missa do dia de Natal Lc 2, 15-20

 Paz! Onde estás?
Nascendo numa época corroída por misérias morais e sociais, Jesus veio renovar o mundo. E os primeiros anunciadores da boa nova foram os humildes pastores de Belém.
As consequências do pecado original
Ao lermos o Gênesis, entristece-nos a história do primeiro pecado do homem, sobretudo ao nos darmos conta de que ali surgiu a fonte da progressiva brutalidade que se espalhou sobre a Terra.
No início, o equilíbrio moral de nossos primeiros pais, Adão e Eva, era vigorosamente forte e robusto, pois eles “foram constituídos em um estado ‘de santidade original’ [...] O homem estava intacto e ordenado em todo seu ser, porque livre da tríplice concupiscência que o submete aos prazeres dos sentidos, à cobiça dos bens terrenos e à auto-afirmação contra os imperativos da razão” 1.
Para romper essa barreira e ser lançada a humanidade num maremagno de desordens, de fato, bastou um só pecado: o original.
O pecado leva à idolatria
“A partir do primeiro pecado, uma verdadeira ‘invasão’ do pecado inunda o mundo: o fratricídio cometido por Caim contra Abel; a corrupção universal em decorrência do pecado” 2. Daí o mal ter se difundido por toda parte numa crescente voracidade, a ponto de conferir realidade à afirmação do poeta Plautus, quando este fez uma descrição do relacionamento entre os seres humanos, na sociedade de seus dias: “Homo homini lupus” 3.
Não tardou muito o homem em substituir o verdadeiro Deus — seu companheiro de conversa e passeio das tardes no Paraíso — por deuses falsos, ídolos materiais e sem vida. Foi com fundamento que Horácio, pela voz de um desses deuses, Príapo (deus da masculinidade e da fertilidade), ridicularizou essa apostasia: “Tempos atrás, eu era o tronco de uma figueira selvagem, madeira imprestável, quando o marceneiro, hesitando sobre o que fazer de mim, se um banco ou um Príapo, preferiu que eu me tornasse o deus” 4.
Os homens querem se fazer adorar
A idolatria não exigiu para si somente figuras materiais, mas esse delírio se estendeu ao endeusamento de certas personalidades. Governantes inúmeros fizeram-se adorar por seus súditos. O título de Augusto, conferido pelo Senado Romano ao Imperador Otávio, tornou-se uma amostra do desequilíbrio de espírito daqueles tempos.
Digna é de nota a proskynesis (o ósculo da poeira do chão pelos súditos, diante do soberano). Um exemplo clamoroso nessa linha deu-se com Alexandre Magno que “com a ‘proskynesis’ [...] exigia o reconhecimento de que oficialmente, em sua qualidade de rei [...], ele não era mais um homem, mas sim, um deus. Em outras palavras, quando Alexandre exigiu que gregos e macedônios se prostrassem a seus pés e osculassem a poeira diante dele, queria que o reconhecessem como deus” 5.
Por trás dessas práticas encontrava-se, evidentemente, a idolatria ao próprio Satanás, denunciada por São Paulo em sua primeira Epístola aos Coríntios: “Considerai Israel segundo a carne: não entram em comunhão com o altar os que comem as vítimas? Que quero afirmar com isto? Que a carne sacrificada aos ídolos ou o próprio ídolo são alguma coisa? Não! As coisas que os pagãos sacrificam, sacrificam-nas a demônios e não a Deus. E eu não quero que tenhais comunhão com os demônios. Não podeis beber ao mesmo tempo o cálice do Senhor e o cálice dos demônios. Não podeis participar ao mesmo tempo da mesa do Senhor e da mesa dos demônios” (1 Cor 10, 18-21).
Infame humilhação das mulheres
E como não poderia deixar de ser, todo esse culto era acompanhado de abjetas depravações, como por exemplo a “prostituição sagrada”, perpetrada no interior dos templos babilônicos e assírios, conforme nos relata o próprio Heródoto 6. Esse mesmo costume era comum e corrente nos templos de Afrodite e de Vênus, na Grécia, como também nos de Astarte, na Síria.
E qual a fonte “vocacional” dessas “sacerdotisas”? Basta percorrer os números 181 e 182 do conhecido “Código de Hamurábi” (aproximadamente 1793 a 1750 a.C.), tão exaltado por certos historiadores, para conhecermos a regulamentação de como deviam os pais proceder para doarem suas filhas aos templos. Ademais, relata Heródoto que, em Babilônia, todas as mulheres nativas, sem qualquer exceção, pelo menos uma vez na vida deviam passar por essa infame humilhação no templo de Melita 7.
Esse horroroso costume era rigorosamente observado também na ilha de Chipre. O mesmo se dava na Fenícia, entre os adoradores de Baal; idem na Frígia, no culto a Cibele e Átis. E não nos esqueçamos de que se atribuíam, aos deuses do Olimpo, não poucos roubos, parricídios, raptos, incestos, infanticídios, etc.
Horrores no trato dispensado às crianças
Se injusto e brutal era o trato dispensado às mulheres, melhor não era o dado às crianças. Heródoto nos faz chegar ao conhecimento os horrores nessa matéria, como por exemplo ter sido prática legal na Grécia, permitida aos tutores das crianças, a pedofilia, que posteriormente foi copiada pela Pérsia 8.
Um famoso historiador francês assim nos narra como deveriam ser consideradas as crianças que nascessem defeituosas: “O Estado tinha o direito de não tolerar que seus cidadãos fossem disformes ou mal constituídos. Por isso ele ordenava ao pai, ao qual nascesse um filho nessa situação, que o fizesse morrer. Essa lei se encontrava nos antigos códigos de Esparta e de Roma” 9.
Falta de amor na família
E quanto à constituição familiar “os adultérios e divórcios estavam na ordem do dia; havia mulheres que tinham se casado vinte vezes” 10. O que evidentemente conduzia a um trato social despótico e injusto. “A falta de amor na família levou à desumanidade para com os escravos, os pobres e os trabalhadores” 11.
As trevas do pecado invadiam todos os povos
Seria um não mais terminar se procurássemos nos aprofundar na recordação do ambiente social e moral dos últimos tempos da Antiguidade. Para formarmos uma ideia de síntese desse período histórico, basta correr os olhos sobre o primeiro capítulo da Epístola aos Romanos: “Deus os entregou a paixões degradantes [...] E é assim que fazem o que não devem. Estão repletos de toda espécie de injustiça, perversidade, ambição, maldade; cheios de inveja, homicídios, discórdia, falsidade, malícia; são difamadores, maldizentes, orgulhosos, arrogantes, engenhosos para o mal, rebeldes para com os pais, estúpidos, desleais, inclementes, impiedosos” (Rm 1, 26.28-31).
Essa era a terrível noite que, como um negro manto de drama, sofrimento e dor, envolvia a humanidade daqueles tempos como um dos frutos do pecado original. Entre o próprio povo eleito, raros escapavam das influências da ambição dos fariseus hipócritas, que iam ao Templo por pura vanglória e exibicionismo, em busca de honras. As trevas do pecado envolviam todos os povos, e o domínio de Satanás se estendia por toda a Terra.
Como reparar tanto horror? Como de certa forma restabelecer a antiga ordem e reabrirem-se as portas do Céu? Nesse caos tão generalizado, onde encontrar, na face da Terra, criaturas humanas que dessem a Deus um louvor puro e inocente?
O menino que reverteu a História
Entremos numa certa gruta e ali veremos um Menino adorado por sua Mãe Santíssima e São José, reunidos em família, oferecendo mais glória a Deus do que toda a humanidade idólatra, e até mesmo mais do que os próprios anjos do Céu em sua totalidade. Já em seu nascimento, numa singela manjedoura, aquele Divino Infante reparava os delírios de glória egoísta sofregamente procurada pelos pecadores. Ele se encarnava para fazer a vontade do Pai e, assim, dar-nos o perfeitíssimo exemplo de vida.
Nenhum pensamento, desejo, palavra ou ação surgida de sua alma divinamente santa terá outro fim que não seja o de glorificar o Pai, a quem tudo consagrou desde o primeiro instante. Não tardarão muitos séculos, depois daquele natal, para os altares dos falsos deuses serem arrasados, os ídolos quebrados, os templos pagãos destruídos — ou convertidos em santuários — e os próprios demônios se calarem. Sim, aquele Menino nascido numa gruta reverterá o trabalho realizado por Satanás durante milênios, e a Roma pagã será a sede do Cristianismo; transformada na Cidade Eterna, dentro de suas muralhas, sobre uma pedra inabalável, se estabelecerá até o fim dos tempos uma infalível cátedra da moral e da verdade.
Os pastores são convidados pelos Anjos
Mas, por outro lado, onde encontrariam os anjos, homens dignos de serem convidados para adorar o Menino? Na própria Belém, o berço de Isaí (1 Sm 16, 1) e de seu filho Davi, o humilde e jovem pastor “louro e de formosos olhos” (1 Sm 16, 12). Nos campos daquelas regiões, escolheram os anjos os destinatários do grande anúncio, pessoas pertencentes à mesma condição social do Rei e Profeta: os pastores de ovelhas. Assim, dois cortesãos do mais nobre sangue — Maria e José —, junto com os pastores de condição humilde e a própria Corte Celeste constituiriam os adoradores do Menino-Deus recém-nascido. Do Templo, nenhum representante.
Os escribas e fariseus desprezavam aquela classe de homens que, dia e noite, no verão ou no inverno, guardavam os rebanhos naquelas pastagens de Belém. Pelo seu teor de vida, os pastores não se enquadravam nas minuciosas práticas e abluções religiosas dos cerimoniais farisaicos. Os terrenos por eles ocupados não eram suficientemente irrigados e, por isso, não lhes assistia um escrupuloso asseio. Ademais, a instrução era por eles acolhida diretamente na própria natureza que não lhes ensinava o uso de vasilhas, a escolha dos alimentos puros etc. Formavam eles uma comunidade à margem da sociedade, que vivia do pasto e no pasto, portanto um povo da terra, totalmente desprezado pelos fariseus. Além disso, eram excluídos do normal procedimento dos tribunais, sendo considerados inválidos seus testemunhos em juízo. Paradoxalmente, os excluídos dos pleitos farisaicos são agora convidados, pelos anjos do Supremo Juiz, a penetrar na corte de um príncipe herdeiro do trono de Davi.
A adoração dos pastores
15 Quando os anjos se retiraram deles para o Céu, os pastores diziam entre si: ‘Vamos até Belém e vejamos o que é que lá aconteceu e o que é que o Senhor nos manifestou’.
A flexibilidade de alma daqueles pastores era plena, submissa e toda feita de prontidão. O anjo lhes dissera para não temerem (cf. Lc 2, 10) e não consta nesse relato de Lucas que tenham passado por algum espanto ao longo do contato com aqueles puros espíritos.
Ora, sabemos pela História o quanto os judeus se amedrontavam com as aparições angélicas, julgando que a morte com certeza se lhes seguiria (cf. Jz 6, 22-23; Jz 13, 20-22; Tb 12, 16-17). Mas esses pastores, apesar de homens de pouquíssimo conhecimento, intuíram rapidamente que, por fim, nascera o Messias.
Sem conhecer as amplas e profundas explicações doutrinárias dos fariseus, eles como todo e qualquer judeu, sabiam da promessa feita por Deus e anunciada pelos profetas aos antigos sobre o futuro aparecimento de um Salvador. Não seria quiçá esse o tema de suas conversas durante as noites de pastoreio?
Restou-nos apenas uma síntese das palavras do anjo a eles. Entretanto não será exagerado crer que ele lhes tenha esclarecido qual deveria ser o lugar e o caminho de acesso à gruta, tanto mais que lhes indicou os sinais distintivos: “Encontrareis um Menino envolto em panos e posto no Presépio” (Lc 2, 12).
As grutas da região lhes deviam ser muito familiares, pois eram os locais de refúgio onde buscavam proteção contra as intempéries. Tampouco se pode descartar a hipótese de ter havido antecedentes de partos ocorridos em circunstâncias análogas às do Natal. O certo é que em nenhum momento lhes passa pela alma a menor dúvida e, por isso, comentam entre si, em meio a muita alegria, o fato narrado pelo anjo, e convictamente concluem e decidem empreender a caminhada rumo ao “que o Senhor nos manifestou” (v. 15).
Receberam com fervor a boa nova
16 Foram a toda pressa, e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura.
O amor não admite lentidão. A pressa dos pastores comprova o grande fervor com que receberam a boa nova.
Como não conheciam o emaranhado conceitual dos fariseus, não se levantou em suas almas a menor objeção sobre a realidade do Messias que se lhes manifestava diante de todos e de cada um. Trinta e poucos anos mais tarde, a cega doutrina dos escribas e fariseus se uniria aos conceitos dos saduceus e herodianos — sem excluir os do próprio Sinédrio — para se opor ao senso comum e sobrenatural dos humildes de espírito e assim, com entranhado ódio, empregar todos os recursos com vistas à condenação do “Salvador, que é Cristo e Senhor, [nascido] na cidade de Davi” (v. 11).
Ali na gruta, naquele momento, estavam presentes o Pai Eterno e o Divino Espírito Santo, que viam naquele tenro, delicado e ao mesmo tempo grandioso Menino, a realização de um plano idealizado desde todo o sempre: “Tu és meu filho muito amado, em quem coloco todas as minhas complacências” (cf. Lc 4, 22 e Mc 1, 11). Como também Maria Santíssima, que através de seus altíssimos dons, de maneira inigualável penetrava os mistérios daquele Nascimento. José a acompanhava muito de perto. Abismados ambos pela incomensurável humildade de Deus em fazer-se homem — à diferença da soberba dos demônios —, concentravam-se para adorar o Divino Infante.
Foi-lhes concedido um dom de fé flexível e obediente
Lá chegam agora também os pastores, em simplicidade e pobreza, atraídos e amados por Deus devido a seu espírito de obediência, e por serem contemplativos. Não era a pobreza material que os tornava diletos de Deus, pois pobres os havia em situação ainda mais deficiente e em maior número. Ademais, não podemos nos esquecer de que essa não era a condição social dos Reis Magos, que paralelamente estavam se pondo a caminho para adorar o Divino Infante.
Por outro lado, seria outro erro querer atribuir ao portentoso milagre da aparição dos anjos, durante a noite, o fator decisivo para a crença daqueles homens toscos e talvez iletrados. Quão maiores e incontáveis seriam os milagres operados por aquele Menino em sua vida pública! Entretanto, muitos judeus não creram.
O fator decisivo foi um especial dom de fé que lhes foi concedido.
A Teologia nos ensina que há uma fé que se poderia denominar puramente intelectual: a pessoa crê em Deus, mas chega a odiá-Lo e temê-Lo como fazem os demônios e os precitos. Há, ainda, os que crêem, mas não traduzem em obras sua fé. Os fatos, como nos são narrados por Lucas, fazem-nos concluir que os pastores possuíam uma fé flexível e obediente, colocando em prática tudo aquilo em que acreditaram. Sem perda de tempo, submeteram todo o seu entendimento e vontade ao que lhes anunciou o sobrenatural.
É naquela noite que, diante do Presépio, encontramos os primeiros cristãos adorando a Cristo, o Absoluto abnegado, despido das manifestações da glória que Lhe é devida. Os pastores, ao serem capazes de adorá-Lo na manjedoura, não teriam dificuldade de fazê-lo no Calvário, tal como Maria o fez de modo tão sublime.
Nós também, nos dias atuais, temos o nosso presépio. O mesmo Unigênito Filho de Deus, reclinado sobre as palhas no interior da gruta em Belém, está presente debaixo das Espécies Eucarísticas. Será que igualmente nos movemos “apressadamente” em busca do Salvador, como o fizeram os pastores?
Proclamaram maravilhas de que tinham sido testemunhas
17Vendo isto, contaram o que lhes tinha sido dito acerca deste Menino.
O bem é de si eminentemente difusivo, e por isso, os pastores, de adoradores transformam-se em arautos das maravilhas contempladas por eles, antecedendo de muito os apóstolos e até mesmo o Precursor, João Batista, em suas missões.
Esse inesquecível Natal, pela mesma razão, fará cantar o coração dos pregadores, santos e Doutores:
“Nós nos reunimos para admirar o aniquilamento do Verbo e gozarmos do piedoso espetáculo de ver como Deus desce para nos levantar, se rebaixa para fazer-nos crescer, e se empobrece para repartir-nos seus tesouros” 12 — afirma Bossuet.
Também São Boaventura proclama as maravilhas da graça operadas no Natal: “Para curar, Deus teve de unir-se à natureza humana, sem exceção de nenhuma parte, pois ela toda estava enferma. Diz-se que se ‘encarnou’ por ser a carne o que é mais enfermo e para indicar melhor a humilhação de Deus” 13. E São Tomás assim explica o nascimento d’Aquele que é eterno: “Pode-se afirmar que Cristo nasceu duas vezes, segundo seus dois nascimentos; porque assim como se diz que corre duas vezes o que corre em dois momentos, assim também se pode dizer que nasce duas vezes o que nasce uma vez na eternidade e outra no tempo; porque a eternidade e o tempo diferem muito mais que dois momentos, ainda que um e outro designem una medida de duração” 14.
18 E todos os que ouviram, se admiraram das coisas que os pastores lhes diziam.
Após ter sido a própria Virgem Santíssima a primeira anunciadora da Boa Nova junto à sua prima Santa Isabel, agora os pastores movem-se para proclamar as maravilhas das quais tinham sido testemunhas.
A aparição do anjo e sua mensagem, a multidão de outros puros espíritos entoando cânticos celestiais, a constatação da realidade dos fatos na própria gruta, ao encontrarem Maria, José e o Menino, devem ter sido acontecimentos que arrebatavam a todos quantos deles tomavam conhecimento. Tanto mais que provavelmente os pastores deviam estar tomados pelo sopro do Espírito Santo e iluminados em sua missão.
Maria conferia tudo o que acontecia no seu coração
19Maria conservava todas estas coisas, conferindo-as no seu coração.
A propósito da afirmação feita por Lucas nesse versículo, ouçamos o que nos comenta Maldonado: “Observava, sim, como creio, todas as coisas, não como se desconhecesse o mistério delas, mas vendo com gozo como se confirmava com novos prodígios e pelo testemunho daqueles pastores, o que ela tinha conhecido antes, pelo anjo Gabriel. Este é o significado das palavras do evangelista, quando ele diz: Ela as conferia em seu coração; ou seja, comparava estas coisas com as que haviam precedido, via a coincidência de todas elas, para confirmar a fé neste mistério, como diz Eutímio. [...]
Segundo São Beda, Maria comparava as coisas que aconteciam com as palavras das antigas profecias: ‘Como lia as Sagradas Escrituras e conhecia muito bem os profetas, comparava consigo o que ia acontecendo acerca do Senhor, com o que d’Ele mesmo via escrito pelos profetas; e conferindo ambas as coisas, via que coincidiam admiravelmente, com uma luz comparável à dos próprios Querubins. Havia dito Gabriel: Eis que conceberás e darás à luz um filho. E antes Isaías havia predito: Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho. Havia profetizado Miquéias (4, 8) que viria o Senhor à filha de Sion, na Torre do Rebanho, e então voltaria o antigo império. E dizem agora os pastores que lhes apareceram milícias da cidade celestial, na Torre do Rebanho, cantando a vinda do Messias. Maria havia lido (Is 1, 3) que o boi conheceu seu dono e o asno, o presépio de seu senhor; e via o Filho de Deus dar vagidos no presépio, vindo para salvar os homens e animais. E em todas e em cada uma dessas coisas comparava o que havia lido, com o que ouvia e via’.
Diz em seu coração para indicar que guardou tudo em seu interior, sem revelar a ninguém. Exemplo admirável de humildade e modéstia virginal, como nota Santo Ambrósio: ‘Aprendamos a castidade da Virgem em todas as coisas, a qual, não menos recatada em seus lábios que em sua carne, conferia em seu coração esses mistérios divinos’. A mesma coisa comentou São Bernardo.” 15.
Maternal acolhida
20Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, conforme lhes tinha sido dito.
Não pode deixar de ser que a Santíssima Virgem os tivesse acolhido com maternal afeto e bondade. Se os anjos condescenderam em lhes aparecer, tal seria que Maria não completasse, com sua nota de Rainha e Mãe, a missão de seus celestiais súditos, acentuando nas almas daqueles homens simples, mas cheios de fé, as graças que Deus lhes concedera. Deveriam eles retomar os cuidados dos respectivos rebanhos, mas tudo leva a crer que não lhes foi fácil cumprir, de imediato, com seus deveres de ofício. Percebe-se, pela manifestação piedosa de sua alegria, o quanto estavam tomados por graças superabundantes e místicas.
Considerações finais
Os anjos cantam e proclamam a instituição do Reino de Cristo que nasce na gruta em Belém. A manifestação desse Reino constitui a glória reparadora, e os que o dão a conhecer glorificam-no, assim como ao próprio Deus e Sumo Bem. O adorável Menino nasceu para tornar conhecido o Pai entre os homens e, assim, poder d’Ele receber a devida glória: “Glorifiquei-Te sobre a terra; acabei a obra que me deste a fazer” (Jo 17, 4).
Ali também, sob certo ponto de vista, com o nascimento de seu Fundador, nasce a Santa Igreja, como afirma Santo Ambrósio: “Vede as origens da Igreja nascente” 16. Uma nova luz brilhou sobre a terra: “Este povo, que jazia nas trevas, viu uma grande luz, e uma luz levantou-se para os que jaziam na sombra da morte” (Mt 4, 16).
Viverá o mundo de hoje sob os influxos dessas graças, ou terá dado as costas a esse incomensurável benefício obtido pela maternal mediação de Maria? A segunda hipótese parece ser a mais provável, infelizmente. Neste caso encontrará a humanidade a tão desejada, necessária e propalada paz? Jamais, se não a procurar onde realmente ela se encontra: “Deixemos, pois, as obras das trevas, e revistamo-nos das armas da luz” (Rm 13, 12).