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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Evangelho XXVII Domingo do Tempo Comum – Ano C - 2013

  Continuação dos comentários ao Evangelho XXVII Domingo do Tempo Comum – Ano C - 2013 - Lc I 7, 5-10
por Mons João Clá Dias

A virtude fundamental da fé
Nosso Senhor já os advertira, em ocasiões anteriores, a respeito do risco do amor desordenado às riquezas – conforme já consideramos nas parábolas do administrador infiel e a do pobre Lázaro -, consequência de uma fé apequenada. Os discípulos foram, pois compreendendo a necessidade dessa fundamental virtude, sem a qual seria impossível perseverar até o fim de sua missão. Ensina São Tomás que essa é a principal virtude para ter-se o desprendimento dos bens materiais, bem como para a prática das outras virtudes, as quais, nas palavras de Royo Marín, “ nela se estribam, como o edifício sobre os seus alicerces […]. Informada pela caridade, dela vivem e, graças a ela, progridem”. 10 É, portanto, indispensável pedi-la a Deus, conforme nos demonstra o Evangelho desta Liturgia.
A fé é passível de crescimento?
Naquele tempo, os Apóstolos disseram ao Senhor: “Aumenta nossa fé!”
Mas era preciso pedir esse aumento de fé, se já a possuíam em seu interior? Todavia, o pedido dos Apóstolos tinha fundamento. A virtude infusa da fé é passível de acréscimo ou de diminuição, e tanto pode se fortalecer como enlanguescer-se. Segundo explica ainda são Tomás, 11 ela cresce ou diminui de forma proporcional ao número de verdades conhecidas. Por esse motivo, além dos atos de piedade e devoção praticados -os quais tambén tornam a fé mais robusta -, fortalecerá essa virtude quem estudar a Doutrina Católica, ampliando o quadro de verdades conhecidas pela própria inteligência.
Aumentaremos a fé se adaptarmos nossa vida diária – trabalhos, obrigações e responsabilidades -à fé professada, pois, se houver dicotomia entre esta virtude e a vida prática, entre aquilo que cremos e o que fazemos, a fé terminará por evaporar-se. É necessário, portanto, que a fé coroe todas as nossas atividades, como destaca o padre Royo Marín: “as almas que tiverem progredido na vida cristã, procupar-se-ão com o incremento desta virtude fundamental até conseguir que toda a sua vida esteja informada por um autêntico espírito de fé que as transponha a un plano estritamente sobrenatural, a partir do qual possam ver e julgar todas as coisas”.12 Contudo, tal conduta não é tão fácil de ser mantida. As dificuldades do dia a dia nos fazem chegar a uma conclusão: é indispensável suplicar com fervor o auxilio divino. Agiram, então, muito bem os Apóstolos ao pedir o aumento de sua fé, a qual, segundo podemos julgar pela resposta de Nosso Senhor, era bem frágil...
Era preciso ter fé antes de pedir seu aumento
6 O Senhor respondeu: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como un grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: 'Arranca-te daqui e planta-te no mar', e ela vos obedeceria”.
Sua resposta reveste-se de certa dureza. De fato, a fé de seus escolhidos era ainda menor que o minúsculo grão de mostarda, quase do tamanho de uma partícula de açúcar. Ora, bastava uma fé de diminuta dimensão para mandar uma árvore sólida como a amoreira jogar-se ao mar. Afirmação surpreendente! A amoreira desta passagem de São Lucas provavelmente corresponde ao Shiquemah -sicômoro-, árvore de raízes vigorosas, que se fixam no chão com toda a força. 13 Seria possível que alguém realizar tamanha proeza? Entretanto, não fez o Mestre tal declaração apenas de forma metafórica. A fé é, de fato, capaz de mover montanhas, pois por detrás dela está o poder de Deus, e quando alguém se une à força divina pela robustez de tão valiosa virtude, torna-se forte quanto é forte o próprio Deus.
Ante essa concepção verdadeira da fé, Nosso Senhor contrapõe o conceito errado do mundo a respeito do relacionamento do homem com Deus.
Uma situação humana, imagem do relacionamento sobrenatural
Se algum de vós tem um empregado que trabalha a terra o cuida dos animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo: 'Vem depressa para a mesa?' 8 pelo contrário, não vai dizer ao empregado: 'Prepara-me o jantar, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois disso tu poderás comer e beber?' 9 Será que vai agradecer ao empregado porque fez o que lhe havia mandado? 10 Assim também vós: Quando tiverdes feito tudo o que vos mandaram, dizei: 'Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer”.
O Divino Mestre tem diante de si ouvintes com acentuado senso hierárquico, portanto, sem os igualitarismos dos dias hodiernos, e para quem todas as funções sociais eram muito bem definidas. Por essa razão pôde fazer uso, nesta parábola, da figura do servo, 14 ou seja, daquele homem sem direitos, cujo trabalho consistia em cuidar dos animais e dos campos de seu senhor, sem que jamais alguém se tivesse posto o problema de ocorrer a hipótese por Ele levantada. Embora entre o povo eleito o tratamento dispensado aos escravos fosse incomparavelmente mais compassivo do que entre os povos pagãos, 15 era inconcebível imaginar o próprio servo sentado à mesa do amo. Ao voltar do trabalho do campo, o criado se lavava e cingia os rins para servir o patrão. Só depois tomava sua refeição.
Esta cena, narrada por Cristo com sabedoria infinita, ilustra qual deve ser nosso relacionamento com Deus. Quando conseguimos cumprir inteiramente os Mandamentos ou nossas próprias obrigações, devemos reconhecer não ter sido por esforço próprio, nem como fruto de qualidades ou capacidades pessoais, mas, sim, da graça. Antes mesmo de termos realizado algum ato bom, Nosso Senhor já nos pagou com antecipação, concedendo-nos sua ajuda. Por isso, mesmo tendo feito o bem, não temos o direito, por nós mesmos, de merecimento algum. Com efeito, assim o declara Santo Ambrósio, Padre e Doutor da Igreja: “ninguém se glorie de seu bom proceder, pois por uma justa dependência devemos nosso serviço ao Senhor. […] Ele não pode admitir que te apropries do mérito de uma ação ou trabalho, já que, enquanto estejamos vivos, é dever nosso trabalhar sempre. Portanto, vive de acordo com a convicção de seres um servo ao qual se encomendaram muitos afazeres […] Não te acredites mais do que és pelo fato de te chamarem filho de Deus -deves reconhecer, sim, a graça, mas não podes esquecer a tua natureza -, nem te enchas de vaidade por ter servido com fidelidade, pois esse era teu dever”. 16 Ainda quando cumprimos nossas obrigações, continuamos sendo servos inúteis, ensina-nos hoje Jesus.
Concepçao comercial da religião
Dada a natureza decaída pelo pecado, a tendência geral do homem é não reconhecer que tudo lhe vem do Alto, forjando para si uma religião marcada pela mentalidade comercial. Muitas vezes transferimos o intercâmbio mercantilista de interesses -tão profundo nas relações humanas de todos os tempos- para o trato com Deus, e queremos apresentar-nos diante d'Ele cobrando aquilo que julgamos pertencer-nos pelo fato de termos feito algum bem. Na realidade, ninguém seria capaz de pronunciar sequer uma jaculatória ou fazer um sinal da cruz com mérito sobrenatural se não estivesse unido, e até “enxertado”, em Nosso Senhor Jesus Cristo, que afirmou: “Sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). No campo sobrenatural, todos os nossos méritos estão ligados a Ele e nos são transferidos por Ele. Somos meros servos! D'Ele recebemos o ser, a redenção e o sustento da graça. 17
A imagem desta parábola encontra-se, então, ainda distante da realidade, pois o servo ali figurado conserva alguma liberdade enquanto nós estamos dentro de uma escravidão compulsória -nossa origem é a escravidão-, a qual, após a Redenção, mais se intensificou.
Deus nos premeia por aquilo que Ele mesmo nos concede
O homen deve, pois, considerar-se um ser contingente, dependente dos outros e consciente de que, em relação a Deus, essa dependência deverá ser absoluta. Se existimos, é porque em primeiro lugar Ele existe e, em sua infinita bondade, tirou-nos do nada, sem nosso consentimento, para dar-nos uma alma na qual pudesse ser introduzida a vida da graça. Ele nos redimiu e a cada instante sustenta nosso ser. Tudo é, portanto, gratuito, e quando agimos com perfeição estamos tão só restituindo-Lhe aquilo que d'Ele mesmo recebemos. Con quanta propriedade afirma a Sagrada Liturgia: “na assembleia dos Santos, vós sois glorificado e, coroando seus méritos, exaltais vossos próprios dons!”. 18 De fato, quando as obras humanas merecem algum prêmio da parte de Deus, isso é devido aos dons ou graças dadas com antecipação por Ele mesmo. Sendo Ele a Humildade e a Generosidade, faz-nos trabalhar para sua glória, ajuda-nos a praticar atos de virtude e ainda nos torna merecedores de sua recompensa, escondendo-Se, como se os merecedores fôssemos nós.
Entretanto, tal prodigalidade divina exige de nossa parte reciprocidade: nunca nos apropriemos daquilo que pertence só a Deus. Somos “servos inúteis”, devendo pedir muito a virtude da fé, a fim de compreender que Ele é o único a levar tudo adiante, e a nós cabe apenas o cumprimento de um mandato ou desígnio seu. Assim, não podemos exigir d'Ele, como se fosse nossa, a glória dos nossos pretensos méritos. Só com essas disposições de alma estaremos tomando a atitude perfeita no relacionamento com Ele.
A perfeita contingência em relação a Deus
Uma só criatura soube ter fé ardente e compreender a contingência de modo perfeito, em sua plenitude, tendo sido objeto de um dom insuperável da parte de Deus, “porque olhou para a humilhação de sua escrava”. (Lc 1, 48). Somente Ela teve a noção clara e sublime do seu nada e de sua dependência completa do Altíssimo. A partir desse reconhecimento do próprio nada, Deus se inebriou de amor por Ela, escolhendo-A e constituindo-A um paraíso para Si, superior ao dos próprios Anjos. A estes fora dado o Céu Empíreo, a nós o Paraíso Terrestre, mas para a Santíssima Trindade foi escolhida Aquela que disse “eis aqui a escrava do Senhor” (Lc 1, 38): Maria Santíssima! Belíssimo comentário a esse respeito nos deixou São Luís Maria Grignion de Montfort: “A divina Maria, direi com os santos, é o paraíso terrestre do novo Adão, onde Ele se encarnou por obra do Espírito Santo, para realizar ali maravilhas incompreensíveis; é o excelso e divino mundo de Deus, que encerra belezas e tesouros inefáveis; a magnificência do Altíssimo, onde Ele ocultou, como em seu próprio seio, seu Filho único e, n'Ele, tudo o que há de mais excelente e precioso”. 19
Nunca perder a Fé perante as dificuldades
O Evangelho deste domingo nos ensina o papel fundamental da fé, na gozosa dependência de Deus. As desilusões e dificuldades humanas, imprevistas ao longo da vida, são permitidas pela Providência Divina para marcar em nós o momento culminante no qual Deus ou o demônio se torna vencedor no campo de batalha interior da alma. Ao presenciar o desabamento dos sonhos construídos sobre os fundamentos frágeis de nosso instinto de sociabilidade desregrado, a fé pode diminuir e ficarmos egoístas, procurando a segurança nos bens materiais. Não obstante, se, pelo contrário, mantivermos a confiança -esperança fortalecida pela fé- recomendada por Nosso Senhor neste trecho do Evangelho, teremos a possibilidade de uma vida feliz nesta terra, ainda que sempre acompanhados da cruz, de toda e qualquer circunstância, devido a nosso estado de prova. Só essa fé firme e sem faça nos faz viver, de fato, numa submissão total a Deus, tornando-nos capazes de enfrentar os sofrimentos com ânimo.
Crescer na fé significa, muitas vezes, presenciar ou sofrer um desastre e manter, no fundo da alma, uma confiança inabalável. Cena mais pungente não poderia enfrentar quem, ao chegar ao Calvário, se deparasse com Jesus crucificado entre dois ladrões! No entanto, com a alma partida diante de tal drama, encontraria consolo se soubesse pensar nas maravilhas que daquela Cruz iriam surgir, tal como fazia Nossa Senhora, que ali estava, de pé, sem esmorecer. Sejamos confiantes, pois os desastres são permitidos por Deus para se obter algum bem maior. A fé é o unguento para todas as nossa dores, é o ânimo e a alegria em meio aos sofrimentos deste grande deserto -a existência no exílio terreno- , até atingirmos um dia a felicidade eterna, na glória celestial.
A fé conquistará o mundo!
Vivemos em uma época de ateísmo em que a fé vai cada vez mais se esvaecendo no coração das pessoas. O terrível orgulho predomina em face de Deus, e o mundo não aceita nem adere às suas verdades. Diante de tal humanidade afastada de seu próprio fim, nosso anseio de católicos é o de ver a Boa-nova do Evangelho conquistar a face da Terra, de maneira a produzir os mais belos resultados em matéria de santidade. Temos bem presente o quanto as condições do momento estão longe de tornar isso naturalmente possível. Por isso, nos é pedido um dos maiores atos de fé jamais vistos e exigidos até os dias atuais.
Se os Apóstolos – escolhidos diretamente por Nosso Senhor – pediram um aumento de sua fé, como não o devemos pedir para nós? Peçamos, pois, a Ele, uma fé robustíssima, suplicando: Senhor, Vós sois Todo-Poderoso e criastes o dom da fé para infundi-lo nas almas; Vós tendes a possibilidade de criar essa virtude em grau infinito. Dai-nos, então, a fé de que tanto precisamos! Vinde e concedei-nos um fulgor de fé como nunca existiu na história!