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sábado, 16 de novembro de 2013

EVANGELHO DA SOLENIDADE DE CRISTO REI CRISTO REI - Lc 23, 35-43 Ano C - 2013

COMENTÁRIO AO EVANGELHO DA SOLENIDADE DE CRISTO REI CRISTO REI - Lc 23, 35-43 ANO C - 2013
Mons. João Scognamiglio Clá Dias,EP
O povo estava a observar. Os príncipes dos sacerdotes com o povo O escarneciam dizendo: “Salvou os outros, salve-Se a Si mesmo, se é o Cristo, o escolhido de Deus!” 36 Também o insultavam os soldados que, aproximando-se dele e oferecendo-lhe vinagre, 37 diziam: “Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo!” 38 Estava também por cima de sua cabeça uma inscrição: “Este é o Rei dos judeus”. 39 Um daqueles ladrões que estavam suspensos da cruz, blasfemava contra ele, dizendo: “Se és o Cristo, salva-Te a Ti mesmo e a nós” 40 O outro, porém, tomando a palavra, repreendia-o dizendo: “Nem tu temes a Deus, estando no mesmo suplício? 41 Quanto a nós se fez justiça, porque recebemos o castigo que mereciam nossas ações, mas Este não fez nenhum mal.” 42 E dizia a Jesus: “Senhor, lembra-Te de mim, quando entrares no teu Reino!” 43 Jesus disse-lhe: “Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso.” (Lc 23, 35-43).
REI NO TEMPO E NA ETERNIDADE
Ao ouvirmos este Evangelho da Paixão, de imediato surge em nosso interior uma certa perplexidade: por que a Liturgia, para celebrar uma festa tão grandiosa como a de Cristo Rei, terá escolhido um texto todo ele feito de humilhação, blasfêmia e dor?
Tanto mais que, em extremo contraste com esse trecho de São Lucas, a segunda leitura de hoje nos apresenta Jesus Cristo como sendo “a imagem do Deus invisível, o Primogênito de toda a criação (...) porque foi do agrado do Pai que residisse n’Ele toda a plenitude” (Col 1, 15 e 19). Como conciliar esses dois textos, à primeira vista, tão contraditórios?
Para melhor compreendermos esse paradoxo, devemos distinguir entre o Reinado de Cristo nesta terra e o exercido por Ele na eternidade. No Céu, seu reino é de glória e soberania. Aqui, no tempo, ele é misterioso, humilde e pouco aparente, pelo fato de Jesus não querer fazer uso ostensivo do poder absoluto que tem sobre todas as coisas: “Foi-me dado todo o poder no Céu e na terra” (Mt 28, 18).
Apesar de as exterioridades nos causarem uma impressão enganosa, Ele é o Senhor Supremo dos mares e dos desertos, das plantas, dos animais, dos homens, dos anjos, de todos os seres criados e até dos criáveis. Porém, diante de Pilatos, assevera: “O meu Reino não é deste mundo” (Jo 18, 36), porque não quer manifestar seu império em todas as suas proporções, a não ser por ocasião do Juízo Final.
Assim, enquanto o Evangelho nos fala de seu Reinado terreno, a Epístola proclama o triunfo de sua glória eterna. No tempo, vemo-Lo exangue, pregado na Cruz entre dois ladrões, sendo escarnecido pelos príncipes dos sacerdotes e pelo povo, insultado pelos soldados e objeto das blasfêmias do mau ladrão. A Liturgia exige de nós um esforço de fé para, indo além do fracasso e da humilhação, crermos na grandiosidade do Reino de Jesus.
Por outro lado, errôneo seria imaginar que Ele não deve reinar aqui na terra. Para compreender bem o quanto Cristo é Rei, é preciso diferenciar seu modo de governar daquele empregado pelo mundo.
O governo humano, quando ateu, encontra sua força nas armas, no dinheiro e nos homens. Tem por finalidade as grandes conquistas territoriais, perdurar longamente e alcançar a felicidade terrena. Porém, o tempo sempre demonstra o quanto esses objetivos são ilusórios e até mentirosos. As armas em certo momento caem ao solo, ou se voltam contra o próprio governante; o dinheiro é por vezes um bom vassalo mas sempre um mau senhor; os homens, quando não assistidos pela graça, neles não se pode confiar.
Napoleão Bonaparte é um bom exemplo do vazio enganador no qual se fundamentam os Impérios neste mundo. Basta imaginá-lo proclamando seu fracasso do alto de um penhasco na ilha Santa Helena, durante o penoso exílio ao qual ficara reduzido. Em síntese, a plenitude da felicidade de um governador terreno é um sonho irrealizável. E ainda que ela fosse atingível, a nós caberia a frase do Evangelho: “Que aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua alma?” (Mc 8, 36).
A REALEZA ABSOLUTA DE CRISTO
A Realeza de Cristo é bem outra. Ele de fato é Rei do Universo e, de maneira muito especial, de nossos corações. Ele possui uma autoridade absoluta sobre todas as criaturas e já muito antes de sua Encarnação, quando se encontrava no seio do Padre Eterno, ouviu estas palavras:
Tu és meu Filho, eu hoje te gerei. Pede-me; dar-te-ei por herança todas as nações; tu possuirás os confins do mundo, tu governarás com cetro de ferro” (Sl 2, 7-9).
Rei por direito de herança
Ele é o unigênito Filho de Deus e por Este foi constituído como herdeiro universal, recebendo o poder sobre toda a criação, no mesmo dia em que foi engendrado (1).
Rei por ser Homem-Deus
Por outro lado, Jesus Cristo é Deus e, assim sendo, tudo foi feito por ele, o Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. Senhor absoluto de toda existência, do Céu, da terra, do sol, das estrelas, das tempestades, das bonanças. Seu poder é capaz de acalmar as mais terríveis ferocidades dos animais bravios e as procelas dos mares encapelados. Os acontecimentos, as forças físicas e morais, a guerra e a paz, a pobreza e a fartura, a humilhação e a glória, o revés e o sucesso, as pestes, os flagelos, a doença e a saúde, a morte e a vida, estão todos ao dispor de um simples ato de sua vontade. Aí está um Governo incomparável, superior a qualquer imaginação, e do qual ninguém ou nada poderá se subtrair.
O título de Rei Lhe cabe mais apropriadamente do que às outras duas Pessoas da Trindade Santíssima, por ser o Homem-Deus, conforme comenta Santo Agostinho: “Apesar de que o Filho é Deus e o Pai é Deus e não são mais que um só Deus, e se o perguntássemos ao Espírito Santo, Ele nos responderia que também o é...; entretanto, as Sagradas Escrituras costumam chamar de rei, ao Filho” (2).
De fato, o título de Rei, quando aplicado ao Pai, é usado de forma alegórica para indicar seu domínio supremo. E se quisermos atribuí-lo ao Espírito Santo, faltará exatidão jurídica, por tratar-se Ele de Deus não-encarnado, pois, para ser Rei dos homens é indispensável ser Homem. Deus não encarnado é Senhor, Deus feito homem é o Rei.
Rei por direito de conquista
Jesus Cristo é nosso Rei também por direito de conquista, por nos ter resgatado da escravidão a Satanás.
Ao adquirirmos um objeto às custas de nosso dinheiro, ele nos pertence por direito. Mais ainda se o obtivermos através de duras penas, pelos esforços de nosso trabalho, e muito mais, se for conseguido pelo alto preço de nosso sangue. E não fomos nós comprados pelo trabalho, sofrimentos e pela própria morte de Nosso Senhor Jesus Cristo? É São Paulo quem nos assevera: “Porque fostes comprados por um grande preço!” (I Cor 6, 20).
Rei por aclamação
Cristo é nosso Rei por aclamação. Antes mesmo das purificadoras águas do Batismo serem derramadas sobre nossa cabeça, nós O elegemos para ser o regente de nossos corações e de nossas almas, através dos lábios de nossos padrinhos. Por ocasião do Crisma e a cada Páscoa, de viva voz nós renovamos essa eleição, sempre de um modo solene.
Continua...

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Evangelho XXXIII Domingo do Tempo Comum - Ano C 2013 - Lc 21, 5-19

Continuação dos comentários ao Evangelho – XXXIII Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013   -   Lc 21, 5-19          
Esperança na vida verdadeira
19 “É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida!”.
Todos nós, como os Apóstolos, estamos sujeitos a passar por situações difíceis em razão de nossa fidelidade a Cristo. Como devemos nos comportar diante delas?
Antes de tudo, precisamos crer firmemente na onipotência de Nosso Senhor e ter bem presente seu amor por cada um de nós, conforme nos exorta Santo Agostinho: “Essa é a Fé cristã, católica e apostólica. Confiai em Cristo que diz: ‘não cairá sequer um fio de vossos cabelos’, e, uma vez eliminada a incredulidade, considerai o quanto valeis. Quem de nós pode ser desprezado por nosso Redentor, se nem sequer um fio de cabelo o será? Ou: como duvidaremos de que dará a vida inteira à nossa carne e à nossa alma Aquele que, por amor a nós, recebeu alma e carne na qual morreu, e a recobrou para que desaparecesse o temor de morrer?”.17
Mas também não podemos duvidar de que Jesus Se encarnou para nos fazer partícipes de sua ressurreição: “Se Cristo não ressuscitou, vossa fé é vã” (I Cor 15, 17), proclama São Paulo.
Uma vez compenetrados de estarmos de passagem nesta Terra, a caminho da eternidade, todos os males que possamos sofrer tomam outra dimensão. “Quem sabe que é um peregrino neste mundo, independentemente do local onde se encontre corporalmente; quem sabe que tem uma pátria eterna no Céu; quem tem certeza de que ali se encontra a região da vida feliz, a qual aqui é lícito desejar, mas não é possível ter, e arde nesse desejo tão bom, santo e casto — esse vive aqui pacientemente”.18 É permanecendo firmes na Fé que ganharemos a verdadeira vida; é só na perspectiva da glória eterna que teremos forças para perseverar na hora das provações. E isto não depende tanto do nosso esforço quanto da graça divina, que devemos pedir sem cessar.
Proclamar a beleza triunfante da igreja
Dois significativos episódios históricos, entre tantos outros, podem ilustrar o ensinamento da liturgia deste domingo.
O filósofo iluminista François-Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo de Voltaire, foi um dos mais festejados ímpios de todos os tempos. Seu ódio contra a Igreja o levou a afirmar: “Estou cansado de ouvir dizer que bastaram doze homens para implantar o Cristianismo no mundo, e quero provar que basta um para destrui-lo”.19 Mas, o atrevido ateu morreu e a ridícula ameaça caiu no vazio.
Não menos arrogante com a Esposa de Cristo foi Napoleão Bonaparte. Após ser excomungado pelo Papa Pio VII, teve a petulância de perguntar sarcasticamente ao legado papal, Cardeal Caprara, se por causa disso iriam cair as armas das mãos dos seus soldados. Ora, segundo narram testemunhas oculares, entre as quais o Conde de Ségur, foi o que aconteceu durante a campanha da Rússia: “As armas dos soldados pareciam ser de um peso insuportável para seus braços intumescidos; em suas frequentes quedas, escapavam-lhes das mãos, quebravam-se ou perdiam-se na neve”.20
Meses depois, Bonaparte viu-se obrigado a assinar o decreto de sua própria destituição no palácio de Fontainebleau, onde mantivera cativo o Vigário de Cristo, e partiu para o exílio. Pio VII, entretanto, a quem ele chamara despectivamente de “velho”, ainda haveria de reinar por quase uma década, sobrevivendo por dois anos ao prisioneiro da Ilha de Santa Helena.
E, assim, poderíamos multiplicar os exemplos mostrando “ser uma característica da Igreja vencer quando atacada, ser melhor compreendida quando contestada e ganhar terreno quando abandonada”, segundo ensina Santo Hilário de Poitiers.21 Ao que o padre Monsabré acrescenta: “muitas vezes, no curso da Era Cristã, pôde-se ver o Corpo Místico do Filho de Deus a ponto de perecer, muitas vezes pôde-se vê-lo recobrar vida e avançar com passo resoluto rumo aos dias da eternidade”.22
Os períodos de perseguição nos convidam a depositar uma fé inquebrantável em Cristo e em sua Igreja, mas também a amá-Los de um modo todo especial. “Em tempo de grandes prevaricações”, afirma o Cardeal Gomá, “até os bons se tornam tíbios. Contudo, em meio às defecções e tibiezas, perseverarão os fortes, os que guardarem a fé e os bons costumes cristãos. Estes se salvarão: “Quem perseverar até o fim, será salvo” (Mt 24, 13). Sendo constantes, obtereis a salvação”.23
Ao nos situar diante de uma grandiosa perspectiva escatológica, o Evangelho deste domingo nos incita a proclamar a beleza triunfante da Santa Igreja, na confiança plena de que quem permanecer filialmente no seu seio obterá como prêmio o próprio Deus!
1 “Osório, que utilizou fontes hoje perdidas, escreveu: ‘Nero condenou os cristãos a diversas formas de morte, e os perseguiu não só em Roma, mas também em todas as províncias, e procurou suprimir o nome cristão’ [...] Refere Lactâncio que ‘a causa da perseguição foi o ódio de Nero contra os cristãos’”. (WEISS, Juan Bautista. Historia Universal. Barcelona: La Educación, 1927, v.III, p.708-709).
2SANCTUS HIERONYMUS. Epistola CXLI: PL 33, 891.
3Cf. GOMÁ Y TOMAS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.IV, p.109.
4SAN BEDA, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.
5GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.110.
6 Isto se vê com maior clareza no Evangelho de São Mateus: “Dize-nos, quando será isso? Qual será o sinal de tua vinda e do fim do mundo?” (Mt 24, 3).
7 SAN CIRILO, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.
8 GOMÁ Y TOMAS, op.cit., p.114.
9 SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Preparação para a morte. Cons. XVII, ponto I.
10 SAN GREGORIO MAGNO, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.
11 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.112.
12 Catecismo da Igreja Católica, n.2834.
13 SAN GREGORIO MAGNO, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.
14 Idem, ibidem.
15 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.112.
16 SAN BEDA, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea.
17 SAN AGUSTÍN, Sermón 214, 12 apud ODEN, Thomas C. e JUST Jr., Arthur A. La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia – Nuevo Testamento, San Lucas. Madrid: Ciudad Nueva, 2000, v.III, p.429.
18 SANCTUS AUGUSTINUS. Sermo 359A. 2.
19 CONDORCET. Vie de Voltaire in Œuvres completes de Voltaire. Paris: Th. Desoer, 1817, t.I, p.55.
20 SÉGUR, Conde de, apud HENRION, Barón. Historia general de la Iglesia. 2.ed. Madrid: Ancos, 1854, t.VIII, p.153.
21 SANTO HILÁRIO DE POITIERS, apud BERINGER, R. Repertorio universal del predicador. La Iglesia y el Papado. Barcelona: Litúrgica Española, 1933, v.XVIII, p.241.
22 MONSABRÉ, OP, Jacques-Marie-Louis. Retraites pascales. I- La tentation. I- Recherche de Jésus-Christ. Paris: Lethielleux, 1877-1888, p.319.
23 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.113.


segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Evangelho XXXIII Domingo do Tempo Comum - Ano C 2013 - Lc 21, 5-19

  Continuação dos comentários ao Evangelho – XXXIII Domingo do Tempo Comum - Ano C - 2013   -   Lc 21, 5-19         
A ruína de Jerusalém e a parusia
Mas eles perguntaram: ‘Mestre, quando acontecerá isto? E qual vai ser o sinal de que estas coisas estão para acontecer?’”.
Os Apóstolos nada perguntam sobre a causa dessa destruição, mas sim quando ela ocorreria. Como bons israelitas, de espírito previdente, queriam saber com exatidão o que iria suceder. O arrasamento do edifício sagrado, símbolo da grandeza do povo eleito, parecia-lhes impossível antes do fim dos tempos, pois, “para um judeu, a ruína da cidade e do Templo equivale à ruína do mundo”.5 Não podiam eles conceber que algum dia lhes faltaria aquele Lugar Santo, único no mundo. Esta é a razão de juntarem em suas perguntas dois fatos totalmente distintos: a ruína de Jerusalém e a parusia.6
Como observa São Cirilo, os Apóstolos “não perceberam a força de suas palavras e julgavam que Ele falava da consumação dos séculos”.7 Por isso, Nosso Senhor, “sem deixar de responder à pergunta com clareza suficiente para eles conjecturarem os acontecimentos vaticinados”,8 falará em dois sentidos: um, a destruição do Templo material; outro, o fim do mundo. Na realidade, o desaparecimento dessa grandiosa construção significava o fim de um mundo: a época da antiga Lei cedia lugar à era da Graça.
Ver todos os acontecimentos na perspectiva divina
Jesus respondeu: ‘Cuidado para não serdes enganados, porque muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu!’; e ainda: ‘O tempo está próximo.’ Não sigais essa gente! 9 Quando ouvirdes falar de guerras e revoluções, não fiqueis apavorados. É preciso que estas coisas aconteçam primeiro, mas não será logo o fim’. 10 E Jesus continuou: ‘Um povo se levantará contra outro povo, um país atacará outro país. 11 Haverá grandes terremotos, fomes e pestes em muitos lugares; acontecerão coisas pavorosas e grandes sinais serão vistos no céu’”.
Jesus responde aos discípulos com uma linguagem enigmática, sem procurar desfazer o equívoco em que incorriam, nem responder-lhes com exatidão. Prefere deixar num lusco-fusco os aspectos cronológicos da pergunta, com vistas à formação moral e espiritual dos seus ouvintes.
Com efeito, a expectativa do fim do mundo como um evento próximo habituava-os a contemplar os acontecimentos desde a perspectiva divina, e preparava as almas daqueles primeiros cristãos para as perseguições que teriam de enfrentar, prefiguras dos últimos tempos, pelo ódio e crueldade dos perseguidores. Ora, sempre que os pecados da humanidade passam de certo limite, Deus intervém manifestando sua cólera e castigando os caprichos e egoísmos dos homens.
Com a Encarnação, Deus levara seu amor às criaturas a um ponto inexcogitável pelos homens, e mesmo pelos anjos. Uma extrema bondade caracterizou a vida pública de Jesus, marcada por inúmeras curas e milagres. Porém, Ele não seria Deus se não manifestasse também o esplendor da sua justiça, virtude não menor que a misericórdia. Tem Ele, por assim dizer, duas mãos: a da misericórdia e a da justiça. Com a primeira, perdoa e protege; com a segunda, cobra e castiga. De uma dessas mãos divinas, ninguém escapa.
Para contemplar a Deus na perspectiva verdadeira, sem distorções nem unilateralismos, é preciso amar n’Ele esses dois aspectos. Considerar a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade morrendo na Cruz para nos redimir, é poderoso estímulo para a nossa piedade. Mas não podemos também deixar de admirar sua severidade, ainda quando ela possa vir a nos atingir.
Porque, como ensina Santo Afonso Maria de Ligório, “não merece a misericórdia de Deus quem se serve dela para ofendê“Nossa Senhora do Apocalipse” - Casa -Lo. A misericórdia é para quem Rosa Mística, dos Arautos do Evangelho, teme a Deus, e não para o que São Paulo dela se serve com o propósito de não temê-Lo. Aquele que ofende a justiça — diz o Abulense — pode recorrer à misericórdia; mas a quem pode recorrer o que ofende a própria misericórdia?”.9
Sereis presos e perseguidos
12 “Antes, porém, que estas coisas aconteçam, sereis presos e perseguidos; sereis entregues às sinagogas e postos na prisão; sereis levados diante de reis e governadores por causa do meu nome”.
Ao anunciar aos Apóstolos as perseguições e sofrimentos que haveriam de enfrentar, Nosso Senhor tinha em vista também instruir os cristãos de todos os tempos, porque inúmeras vezes ao longo da História a proclamação do nome de Jesus Cristo lhes trará como consequência serem injustamente presos, perseguidos ou conduzidos aos tribunais. E isto chegará ao auge nos últimos tempos, pois quanto maior for a decadência moral da humanidade, inelutavelmente mais ódio haverá contra os justos, cuja mera existência já representa muda censura aos maus.
Bem pondera São Gregório Magno: “A última tribulação será precedida de muitas outras, porque devem vir antes muitos males que possam anunciar o mal sem fim”.10
Testemunhas da fé na hora da provação
13 “Esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé”.
Errôneo seria pensar que durante as perseguições cabe aos bons ficarem encolhidos e timoratos, incapazes de qualquer ação. Pelo contrário, dão-lhes elas ensejo a testemunharem com coragem a boa doutrina diante daqueles que se desviaram do caminho certo.
Ao afirmar que as portas do inferno não prevalecerão contra a sua Igreja (cf. Mt 16, 18), estabeleceu o Divino Fundador que ela será não apenas invencível, mas sempre triunfante. Assim, por mais que os infernos, não podendo destruí-la, se organizem para sufocá-la, jamais conseguirão impedir sua atuação. E, sejam quais forem as aparências, a Luz de Cristo permanecerá em sua Esposa com todo o seu poder e grandeza, aguardando o momento de manifestar-se de forma intensa, majestosa e irresistível.
Nessas horas de tempestade, suscita a Providência testemunhas da fé que sejam fachos da Luz de Cristo a rasgar a obscuridade da provação. Muitas vezes, inclusive, Deus Se utiliza de instrumentos frágeis, de modo a deixar mais patente sua onipotência: Gedeão, último homem da tribo de Manassés; Judite, piedosa viúva; e os próprios Apóstolos, simples pescadores. E, se percorrermos as grandes aparições da Virgem Maria, desde Guadalupe até Fátima, a quem vemos como receptores da mensagem, senão pessoas de escassa cultura e predicados?
Quanto aos acontecimentos do fim do mundo, serão justamente a firmeza na fé e a força impetratória dos fiéis, perante o ódio insaciável dos sequazes do anticristo, que atrairão a intervenção divina, desencadeando o castigo final.
Conselho divino confirmado pela História
14 “Fazei o firme propósito de não planejar com antecedência a própria defesa; 15 porque Eu vos darei palavras tão acertadas, que nenhum dos inimigos vos poderá resistir ou rebater”.
Com esta surpreendente afirmação, parece Nosso Senhor convidar seus discípulos à negligência, ao invés de incentivá-los a se prevenirem perante a perspectiva da perseguição. Ora, esclarece o Cardeal Gomá, Jesus “não lhes manda que não procurem precaver-se nos transes difíceis pelos quais passarão, mas sim que não se aflijam por isso, pois nos momentos de crises mais agudas poderão contar com a inspiração especial de Deus”.11
De fato, na luta de todos os dias, vale o princípio atribuído a Santo Inácio: “Rezai como se tudo dependesse de Deus e trabalhai como se tudo dependesse de vós”.12 Mas nesta passagem do Evangelho refere-Se o Mestre aos momentos de extrema aflição em que tudo parece perdido. Nessas horas, comenta São Gregório, “é como se o Senhor dissesse a seus discípulos: ‘Não vos atemorizeis. Vós ireis ao combate, mas Eu é que combaterei; vós pronunciareis palavras, mas quem falará sou Eu’”.13
E a História comprova com abundância a esplêndida realização dessa profecia de Nosso Senhor, nos julgamentos iníquos promovidos contra os filhos da luz. Santa Joana d’Arc, por exemplo, era uma camponesa sem estudos; suas respostas, entretanto, confundiram o tribunal que a julgava, pela extraordinária profundidade teológica.
Deserção e traição nas próprias fileiras
16 “Sereis entregues até mesmo pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos. E eles matarão alguns de vós. 17 Todos vos odiarão por causa do meu nome”.
Até no seio das próprias famílias haverá divisão, multiplicando o sofrimento daqueles que serão entregues por “pais, irmãos, parentes e amigos”. Pois, como ensina São Gregório, “os mais cruéis tormentos para nós são os causados pelas pessoas mais queridas, porque, além da dor corporal, sentimos o carinho perdido”.14
Já o Cardeal Gomá interpreta este versículo num sentido simbólico, mais abrangente: “Aos vexames que deverão sofrer da parte dos inimigos, se acrescentará um mal mais grave: a deserção e a traição nas próprias fileiras”.15 Com efeito, quantas vezes não foram hereges ou apóstatas os mais acirrados adversários da Igreja?
Deus é o principal Ator da História
18 “Mas vós não perdereis um só fio de cabelo da vossa cabeça”.
Julgamos, por vezes, serem raríssimas as intervenções de Deus nos acontecimentos terrenos. Como se Ele, após criar o universo, deixasse os fatos correrem por si, procedendo de forma semelhante a alguém que planta uma árvore e se despreocupa totalmente do seu crescimento. Nada mais contrário à realidade. Deus não só age na História, mas, sobretudo, é seu principal Ator. Tudo está em suas santíssimas mãos, nada foge ao seu governo: “Em Deus vivemos, nos movemos, e somos” (At 17, 28).
Às vezes, a ação da Divina Providência nos fatos concretos é visível aos olhos de todos, por ser desígnio seu torná-la patente. Porém, na maior parte das ocasiões, Ela opera de forma oculta ou discreta, deixando por conta do nosso entendimento e da nossa fé discernir o cunho de sua atuação.
O Criador tem tudo contado, pesado e medido. E, ao agir sobre os acontecimentos, tem sempre em vista, junto com a própria glória, a salvação dos que são seus. Por isso, afirma São Paulo: “Tudo quanto acontece, concorre para benefício dos justos” (Rm 8, 28).
Cada um dos nossos atos, gestos ou atitudes serão consignados no Livro da Vida. Nenhum ato de virtude ficará sem recompensa, conforme afirma São Beda: “Não cairá um só fio de cabelo da cabeça dos discípulos do Senhor, porque não somente as grandes ações e as palavras dos santos, mas também o menor de seus pensamentos será dignamente premiado”.16
Continua no próximo post.