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quarta-feira, 18 de junho de 2014

EVANGELHO — XII DOMINGO DO TEMPO COMUM — ANO A – Mt 10, 26-33

CONTINUAÇÃO DOS COMENTÁRIOS AO EVANGELHO — XII DOMINGO DO TEMPO COMUM — ANO A – Mt 10, 26-33
II – COMENTÁRIO SOBRE O EVANGELHO
Este é o fundo de quadro do Evangelho de hoje e, por isso, começa ele com o firme conselho:
26 Não tenhais medo deles
Jesus envia seus discípulos em missão e profetiza as perseguições que por causa d’Ele sofrerão, conforme relatam os versículos anteriores. Por isso recomenda-lhes confiarem em seus conselhos, como por exemplo, o de serem perseverantes e destemidos na pregação do Evangelho, pois serão amparados e protegidos pelo Pai que está nos Céus, sobretudo no tocante à salvação eterna. Esta será a constante das outras passagens.
27 O que Eu vos digo às escuras, dizei-o às claras e o que vos é dito ao ouvido, pregai-o sobre os telhados
Para melhor entendermos este versículo, devemos nos reportar aos costumes da época.
Aos sábados, dia reservado ao Senhor, todos se reuniam na sinagoga para ouvir a Palavra de Deus. Ao contrário do que se imaginaria, o leitor não apenas lia em voz baixa, como também não se dirigia aos assistentes, mas falava a um intermediário perto dele, o qual, por sua vez, proclamava em alta voz o que ouvia.
Outro costume tinha lugar às sextas-feiras à tarde. O ministro da sinagoga subia ao mais alto teto de uma das casas da cidade e tocava fortemente uma trombeta, advertindo todos os trabalhadores de que era hora de retornarem aos seus lares, pois aproximava-se o repouso sabatino religioso.
O Divino Mestre usou essas figuras da vida comum e corrente naqueles tempos para ilustrar qual devia ser a disposição de alma dos discípulos, ao exercerem o ministério de arautos do Evangelho. E, havendo-as mencionado, torna Jesus a incentivá-los à confiança.
28 Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma. Temei antes Aquele que pode lançar a alma e o corpo na Geena.
Os judeus ortodoxos, contrariamente aos saduceus, acreditavam na imortalidade da alma, e por isso comenta São João Crisóstomo: “Observemos que (Jesus) não lhes promete livrá-los da morte, mas lhes aconselha a desprezá-la, o que é muito mais que livrá-los da morte, e lhes insinua o dogma da imortalidade” (4). Em seguida lhes apresenta duas significativas metáforas, relacionadas com a Providência Divina.
29 Porventura não se vendem dois passarinhos por um asse? E, todavia, nem um só deles cairá no chão sem a permissão de vosso Pai.
O “asse” era a menor moeda usada pelos romanos. Cunhada em bronze, valia a décima sexta parte de um denário. Portanto, além de não ser judaica, tinha valor real insignificante. Dois passarinhos valiam tão pouco que eram vendidos por esse preço irrisório e, no entanto, necessitavam do consentimento do Pai para serem mortos.
30 Até os próprios cabelos da vossa cabeça estão todos contados. 31 Não temais, pois. Vós valeis mais que muitos passarinhos.
O objetivo dessas duas comparações feitas por Jesus é ressaltar o grande carinho e cuidado da Providência Divina para com suas criaturas. Se passarinhos e cabelos são tratados com esse cuidado por Deus, quanto mais se preocupará Ele em proteger seus discípulos que estão sendo enviados para pregar sobre o Reino!
Não há razão para temerem as injustiças e perseguições que lhes sobrevierem, conforme exclama Jeremias na primeira leitura de hoje: “O Senhor, porém, está comigo, qual poderoso guerreiro. Por isso, longe de triunfar, serão esmagados meus perseguidores. Sua queda os mergulhará na confusão. Será, então, a vergonha eterna, inesquecível” (Jer 20, 11).
A essa altura, a Liturgia de hoje se encerra trazendo à baila os dois versículos seguintes, a fim de frisar a importância e o valor absoluto do Tribunal do Pai em relação ao dos homens.
32 Todo aquele, portanto, que Me confessar diante dos homens, também Eu o confessarei diante de meu Pai que está nos Céus. Porém, quem Me negar diante dos homens, também Eu o negarei diante de meu Pai que está nos Céus.
São bem conclusivas estas duas promessas de Nosso Senhor, em face da glória futura ou do castigo. Realmente, vale a pena sofrer como São Paulo: “Muitas vezes vi a morte de perto. Cinco vezes recebi dos judeus os quarenta açoites menos um. Três vezes fui flagelado com varas. Uma vez apedrejado. Três vezes naufraguei, uma noite e um dia passei no abismo” (2 Cor 11, 24-25). Muitos outros riscos e dramas são narrados por ele nessa Epístola. E mais adiante relata que ele “foi arrebatado ao Paraíso e lá ouviu palavras inefáveis, que não é lícito a um homem repetir” (2 Cor 12, 4).
III – CONCLUSÃO
Nesse panorama futuro e eterno devem estar fixados os nossos olhos, e não nas delícias fátuas e passageiras desta vida, ainda quando legítimas. Nem falemos do pecado, porque ele terá como consequência imediata a frustração, e o fogo do inferno após a morte.
As dores, angústias e dramas pelos quais passamos durante nossa existência terrena nada são em comparação com o prêmio dos justos, conforme garante São Paulo: “Tenho para mim que os sofrimentos da presente vida não têm proporção alguma com a glória futura que nos deve ser manifestada” (Rm 8, 18).
Resta-nos lembrar o indispensável papel de Maria na nossa salvação. Pois assim como Jesus veio a nós por Maria, é também por meio d’Ela que obteremos as graças necessárias para sermos outros Cristos e alcançarmos a vida eterna.
1 ) Rigoletto, Ato III, cena I.
2 ) cf At 17, 28.
3 ) Retiros pascoais [1880] instr. 3ª

4 ) “Hom. 35” — in Mat.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

EVANGELHO — XII DOMINGO DO TEMPO COMUM — ANO A – Mt 10, 26-33

COMENTÁRIO AO EVANGELHO — XII DOMINGO DO TEMPO COMUM — ANO A – Mt 10, 26-33
Amanhã, tudo saberemos!
A morte, com sua implacabilidade, retira de nossos olhos os óculos que falseiam a visão do universo criado e do relacionamento de cada um de nós com o próximo e com Deus. No dia do Juízo “nada há encoberto que não se venha a descobrir, nem oculto que não se venha a saber”.
EVANGELHO Mt 10, 26-33
26 Não os temais, pois, porque nada há encoberto que não se venha a descobrir, nem oculto que não se venha a saber. 27 O que Eu vos digo às escuras, dizei-o às claras e o que vos é dito ao ouvido, pregaio sobre os telhados.
28 Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma. Temei antes Aquele que pode lançar a alma e o corpo na Geena. 29 29 Porventura não se vendem dois passarinhos por um asse? E, todavia, nem um só deles cairá no chão sem a permissão de vosso Pai. 30 Até os próprios cabelos da vossa cabeça estão todos contados. 31 Não temais, pois. Vós valeis mais que muitos passarinhos.
32 Todo aquele, portanto, que Me confessar diante dos homens, também Eu o confessarei diante do meu Pai que está nos Céus. 33 Porém, quem Me negar diante dos homens, também Eu o negarei diante do meu Pai, que está nos Céus (Mt 10, 26-33).
I – FUNDO DE QUADRO
O homem e a procura da verdade
“As palavras voam e a escrita permanece”, diz um antigo ditado. De fato, quão imensurável é o montante de frases, considerações e discursos proferidos pelos homens, volatilizados ao longo da História! Entretanto, muitas vezes a própria palavra escrita perece. Onde foram parar os impressos produzidos em todos os cantos da terra, a partir de Gutenberg? Muitos desapareceram sem deixar traço.
A verdade, porém, é perene. A mentira, os sonhos fantasiosos, as desconfianças infundadas e outros delírios do gênero têm curta duração; o tempo se encarrega de apagar sua lembrança.
Todavia, apesar de a verdade gozar de sólida estabilidade, às vezes não é fácil discerni-la. Em virtude do nosso senso do ser, nós a procuramos noite e dia sem cessar, e às vezes não a encontramos porque nosso egoísmo, ou nosso amor próprio, ou nossas paixões desordenadas se interpuseram como obstáculo. Quando a fé não ilumina a razão, e esta não orienta retamente a vontade, criamos critérios próprios, carregados de cores desproporcionadas que, com maior ou menor intensidade, alterarão a objetividade da verdade. Por outro lado, pelo desvario de nossos prazeres, apetências e imaginações, modelamos segundo as leis da mentira tudo aquilo que ilusoriamente o capricho nos apresenta como eterna felicidade.
Só por essa razão já podemos medir como foi importante Jesus haver instituído o Papado. Se não tivéssemos Papa, onde obteríamos consistentes interpretações da Revelação, da Fé e da Moral?
O famoso compositor Verdi atribuiu à mulher a mobilidade de uma pluma ao vento (1), mas enganou-se restringindo a ela esse predicado. Na verdade, trata-se de uma característica do pensamento humano in genere. Diante desse problema, como podemos ver, por nós mesmos, a verdade sem véus nem fantasias?
A morte, fim de todas essas quimeras
Vivemos nesta terra em estado de prova e de passagem. Tão precária é nossa situação que nos enganamos facilmente mesmo a propósito do tempo, vivendo como se nossa permanência neste mundo fosse eterna. Não é raro cruzar pela nossa mente aquele sonho da possível descoberta do elixir da longa vida, ou do elixir da própria imortalidade. Muitos prefeririam estender ao infinito os limites de sua existência terrena, transformando-a numa espécie de Limbo perpétuo, quer dizer, um tipo de vida no qual pudessem ter felicidade natural, sem nenhum vôo de espírito. Esses participam, consciente ou inconscientemente, de um culto implícito que poderia muito bem ser rotulado de limbolatria.
A morte, com sua implacabilidade e trágica realidade, põe fim a essas quimeras, e retira de nossos olhos os óculos que falseiam a visão do universo criado e do relacionamento de cada um de nós com o próximo e com Deus. Ademais, a morte traz consigo o Juízo divino: “Nada há encoberto que não se venha a descobrir” (v. 26).
Aqueles de nós que se entregam ao pecado, fazem-no muitas vezes às escondidas, longe da vista alheia, por causa do sentimento de vergonha, esquecendo-se de que não podem se esconder da vista de Deus, pois n’Ele fomos criados, n’Ele existimos e n’Ele nos movemos, segundo ensina São Paulo (2). Nada escapa à lembrança de Deus. Pensamentos, desejos, palavras, silêncios, atos e omissões de cada um de nós, segundo por segundo, são conhecidos por Deus: “Até os próprios cabelos de vossa cabeça estão todos contados” (v. 30).
É sobre isso que Jesus nos fala no Evangelho de hoje: tudo quanto houver de mais oculto será descoberto, e todos conhecerão tudo de todos.
Dois serão os momentos da verdade: o do Juízo Particular e o do Final. Não haverá contradição entre um e outro, nem sequer será um a revisão do outro, mas, sim, uma confirmação. Nossas ilusões, como também nossas faltas ou virtudes, sempre têm não só uma repercussão social, mas até mesmo efeitos correlacionados com a ordem do universo. Desse modo, ao homem como indivíduo cabe um juízo particular e, enquanto membro de uma sociedade, um juízo universal.
O Juízo Particular
Não estaremos a sós nem sequer no Juízo Particular, pois Deus, a Verdade em sua essência, estará presente. Nessa ocasião reveremos todas as nossas impressões, apreços, ânsias, raciocínios, etc., pelo prisma da Verdade, que se apresentará majestosa diante de nós. Nessa hora, de que nos adiantarão as honras, as riquezas, os prazeres, os romantismos e coisas do gênero? Terrível será comparecer a esse Juízo em estado de pecado, sem o devido arrependimento e sem ter recebido o Sacramento da Reconciliação. Terrível, porque não haverá mais tempo para implorar perdão.
Que Deus não nos permita cair em tal situação. Quem tivesse essa desventura, veria até mesmo os méritos da Paixão e Morte de Cristo — entretanto colocados à nossa disposição para salvar-nos — levantando-se contra si para condenar. O bom e misericordioso Jesus, todo feito de suavidade, estariaa invocar o seu Preciosíssimo Sangue, derramado todo na Cruz, como motivo de condenação, para lançar o infeliz imediatamente no inferno.
Aqueles que um dia clamaram: “Caia o seu sangue sobre nós e sobre nossos filhos” (Mt 27, 25), assistiram anos depois à tremenda catástrofe da destruição de sua amada Jerusalém. Castigo análogo e infinito se precipitaria sobre nós se caminhássemos ao encontro de Jesus sem estarmos devidamente em ordem. Ah! se tivéssemos sempre claro aos nossos olhos que, com nossos pecados, preparamos o dia da cólera divina, seríamos santos. Quanto mais pecamos, mais ira acumulamos sobre nossa cabeça e mais implacável será nosso Juízo. O versículo 26 do Evangelho de hoje nos traz uma advertência no sentido de jamais cometermos pecado, e, se por desgraça cairmos, de procurarmos sem tardança a reconciliação com Deus. Hodie si vocem eius audieritis, nolite obdurare corda vestra — “Se hoje ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações” (Hb 3, 15).
O Juízo Final
Sob o prisma da repercussão social do pecado, é indispensável até mesmo para a plenitude do triunfo de Cristo a realização de um juízo universal.
Jesus fez-se Homem com uma doçura insuperável; é impossível haver maior manifestação de humildade, pobreza e misericórdia do que a d’Ele. Seu desejo de derramar todo o seu sangue para salvar a humanidade, elevá-la a um plano divino e, assim, abrir-lhe um caminho seguro, feliz e santo para a eternidade, realizou-se com perfeição.
Indo em sentido oposto, a maior parte da humanidade pisou sobre esse sangue, preferindo as vias do pecado e dos prazeres ilícitos. Por isso, o valor infinito dos méritos do sacrifício do Calvário impõe a realização de um juízo universal, a fim de “recapitular todas as coisas em Cristo” (Ef 1, 10). Se Cristo foi publicamente ofendido, é indispensável que também de maneira pública sejam proclamados seu poder, honra e glória. Antes de se iniciar uma nova “era histórica” — a da eternidade, na qual todos viverão ressurrectos, em corpo e alma, alguns na glória, outros condenados ao inferno — será necessário ficar claro para todos o quanto o livre arbítrio não significa a liberdade de praticar o mal, de pensar e abraçar o erro e de cultuar o feio. Todos devem ver também com toda a evidência que o prêmio dos bons vem do fato de submeterem sua vontade a Cristo, motivo pelo qual são chamados a reinar com Ele nos Céus.
O Juízo Final tem, ademais, um importante papel no tocante à vida social, pois facilmente nos equivocamos julgando que a morte encerra de maneira cabal a presença e a ação do homem sobre a terra. Tanto uma como a outra continuam de um modo indireto.
Assim, não é raro acontecer que a boa ou má fama de um falecido contrária à verdade, permaneça na lembrança de eras históricas inteiras. Às vezes, filhos maus de pais bons tornam equívoca a interpretação dos atos de seus progenitores, e vice-versa. Por mais que haja um violento corte entre a vida no tempo e a passagem para a eternidade, não poucas vezes os efeitos das obras boas ou más realizadas aqui, continuam a repercutir por longos anos.
“Por justo juízo de Deus, fui condenado!”
Este é um assunto tão rico que mesmo uma vasta biblioteca não conseguiria abarcar todas as obras necessárias para abordá-lo de maneira exaustiva. Contudo, para efeitos do presente artigo, vale a pena ilustrá-lo considerando um fato preservado pela tradição da Ordem dos Cartuxos.
Conta a história que seu fundador, São Bruno, resolveu abandonar o mundo e tornar-se monge ao testemunhar espantoso acontecimento passado com um então célebre personagem da Paris do século XI, Raymond Diocrés, doutor em Teologia, professor e considerado pessoa muito virtuosa. Faleceu ele no ano de 1082. Uma multidão, com destaque para seus alunos, acorrera para velar seu corpo, colocado, conforme o costume da época, num majestoso leito e coberto com um suave véu.
Sob o olhar atento dos presentes, deu-se início ao Ofício de defuntos. Ora, a certa altura, na leitura de uma das lições, é proclamada a pergunta:
 “Responde-me: Quão grandes e numerosas são tuas iniqüidades?”
Qual não foi o espanto de todos, ao ouvirem uma voz sepulcral, mas clara, saída de baixo do véu mortuário dizendo:
— Por justo juízo de Deus, fui ACUSADO!
Interrompem o Ofício e levantam o véu, e ali estava o morto gelado e enrijecido, sem o menor sinal de vida.
Recomeçam o Ofício e novamente, ao chegar-se à pergunta acima mencionada, “responde-me”, espanto muito maior: o corpo, antes rígido, desta vez se levanta à vista de todos e, com voz mais sonora e forte, afirma:
— Por justo juízo de Deus, fui JULGADO.
E, logo a seguir, cai sobre o leito.
Numa atmosfera de terror generalizado, os médicos analisaram o cadáver, atestando cuidadosamente a inexistência do menor sopro de vida, inclusive por estarem rígidas as articulações. Não houve clima psicológico para retornarem às orações oficiais, que foram transferidas para o dia seguinte.
A cidade de Paris ferveu de comentários e discussões sobre o caso: uns defendiam a tese de que aquele homem havia sido condenado, e era assim indigno das bênçãos da Igreja; outros afirmavam que todos nós seremos ACUSADOS, e depois, JULGADOS.
O próprio Bispo oficiante foi partidário desta opinião e por isso reiniciou, no dia seguinte, a mesma cerimônia, desta vez ainda mais concorrida, com um público pervadido de extrema apreensão e curiosidade.
Na mesma passagem da quarta leitura de Matinas, o Bispo proclamou:
“Responde-me...” Em meio ao grande suspense, o falecido Raymond Diocrés se levantou e, numa voz aterradora, exclamou:
— Por justo juízo de Deus fui CONDENADO!
E tornou a cair imóvel.
Não havia dúvida, estava desfeito o enorme equívoco sobre sua imerecida reputação e falsa glória. Por ordem das autoridades eclesiásticas, o corpo foi despojado de suas insígnias e lançado em vala comum.
O episódio marcou profundamente aqueles anos e foi esta a razão pela qual Bruno e seus primeiros quatro companheiros, testemunhas oculares do fato, resolveram abandonar o mundo e abraçar a vida religiosa, resultando daí a fundação da Ordem dos Cartuxos.
Dies irae, dies illa...
Por esse ilustrativo acontecimento podemos fazer idéia de quão numerosos serão os equívocos sobre a realidade das consciências e dos juízos de Deus. E só por essa narração já se entenderia melhor a necessidade de um juízo universal.
Em sua sóbria mas eloquente majestade, a Santa Igreja canta os aspectos terríveis daquele dia, na Sequência da Missa de “Réquiem”: o “Dies Irae”. Mozart dizia estar disposto a trocar a honra que todas as suas obras lhe granjearam, pela autoria desse único moteto gregoriano.
“O dia da ira, aquele que reduzirá tudo a cinzas... Que terror, quando o Juiz vier para tudo examinar rigorosamente!... Será apresentado o livro que contém tudo pelo qual será julgado o mundo. Quando o Juiz estiver sentado, tudo quanto está oculto será revelado, nada restará impune ...”
Naquele dia, saber-se-á a razão das perseguições, das heresias, dos martírios, das calúnias, das invejas, etc. Será o dia do triunfo da justiça divina, cada um receberá à vista de todos aquilo que merece. Porém, não será um dia marcado por vinte e quatro horas, mas sim eterno. Pelos séculos dos séculos, sem fim, as minúcias do comportamento de cada um dos seres humanos ficará na lembrança dos santos e dos condenados.

Assim, não devemos descuidar de nossa salvação eterna, tal qual nos recomendam doutores e espiritualistas, como Monsabré, de quem encontramos esta cogente advertência: “Comparecereis muito em breve diante do trono de vosso grande Juiz. Ouvireis sair de sua boca uma bênção ou uma maldição? Eu o ignoro. Tudo quanto posso dizer é que necessitais tomar vossas garantias seguindo este conselho do Apóstolo: ‘Com temor e tremor trabalhai por vossa salvação’ (Fl 2,12)”
CONTINUA NO PRÓXIMO POST

domingo, 15 de junho de 2014

Comentário ao Evangelho – Solenidade de Corpus Christi – Jo 6, 51-58 - Ano A

Comentário ao Evangelho – Solenidade de Corpus Christi



Evangelho Jo 6, 51-58
“Naquele tempo, disse Jesus às multidões dos judeus: 51 ‘Eu sou o pão vivo descido do Céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que Eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo’. 52
Os judeus discutiam entre si, dizendo: ‘Como é que ele pode dar a sua carne para comer?’. 53 Então Jesus disse: ‘Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. 54 Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e Eu o ressuscitarei no último dia. 55 Porque a minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida. 56 Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e Eu nele.
57 Como o Pai, que vive, Me enviou, e Eu vivo por causa do Pai, assim aquele que Me recebe como alimento viverá por causa de Mim. 58 Este é o pão que desceu do Céu. Não é como aquele que os vossos pais comeram. Eles morreram. Aquele que come este pão viverá para sempre’” (Jo 6, 51-58).
Uma insuperável dádiva...
O amor de Deus pelos homens, manifestado na Encarnação, atingiu um ápice inimaginável com a instituição da Eucaristia. E qual é nossa resposta a tão grande doação?
 I – Deus dá-Se por inteiro
Existindo desde toda a eternidade, a Trindade não necessitava da criação. Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo bastavam-Se inteiramente, desfrutando de uma felicidade perfeita, infinita. Nisso consiste a glória intrínseca e insuperável das Três Divinas Pessoas. No entanto, ao criar, Deus quis tornar as criaturas partícipes de sua felicidade, e estas, ao se assemelharem ao Criador Lhe renderiam a glória extrínseca, cumprindo assim a finalidade mais alta de seu ser. Foi, pois, a criação um ato de doação, de entrega e de generosidade supremas1, requintado depois com a Encarnação do Verbo, quando Deus sujeitou-Se a assumir a pobre natureza humana a fim de nos remir do pecado de nossos primeiros pais.
O Homem-Deus haveria de prolongar sua presença na Terra
Mas o incomensurável amor de Deus por nós não se limitou a isso. Para nos abrir as portas do Céu, chegou a padecer dolorosa Paixão, morrer na Cruz e ressuscitar. E o teria feito, se preciso fosse, para resgatar um único homem. Ora, cabe-nos perguntar: depois de manifestar esse inacreditável amor por nós, haveria Ele de simplesmente subir aos Céus e abandonar o convívio com os homens cuja redenção tão caro Lhe custou? Seria possível imaginar, depois de tal união conosco, haver essa irremediável separação?
A maravilhosa solução para esse perplexitante problema só a Deus poderia ocorrer. Comenta belamente, a este propósito, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira:
“Não quero dizer que a Redenção e o sacrifício da Cruz impusessem a Deus, em rigor de lógica, a instituição da Sagrada Eucaristia. Mas pode-se dizer que tudo clamava, tudo bradava, tudo suplicava por que Nosso Senhor não Se separasse assim dos homens. E uma pessoa com senso arquitetônico deveria entrever que Nosso Senhor arranjaria um meio de estar sempre presente, junto a cada um dos homens por Ele remidos. De forma tal que, depois da Ascensão, Ele estivesse sempre no Céu, no trono de glória que Lhe é devido, mas ao mesmo tempo acompanhasse passo a passo a via dolorosa de cada homem aqui na Terra, até o momento extremo em que cada um dissesse, por sua vez, o ‘Consummatum est’ (Jo 19, 30)”.2
E conclui com esta piedosa confidência: “Creio que se eu assistisse à Crucifixão e soubesse da Ascensão, ainda que não soubesse da Eucaristia, eu começaria a procurar Jesus Cristo pela Terra, porque não conseguiria me convencer de que Ele tivesse deixado de conviver com os homens. Esse convívio verdadeiramente maravilhoso de Jesus Cristo com os homens se faz, exatamente, por meio da Eucaristia”.3
O fato de Deus ter operado a Criação para dar-Se a Si mesmo já nos enche de admiração. Muito mais, porém, é Ele ter assumido a natureza humana para, por sua morte, propiciar-nos o infinito dom da vida sobrenatural e abrir-nos as portas do Céu. Contudo, levar o amor a ponto de dar-Se aos homens em alimento, supera qualquer capacidade de imaginação! Pode-se dizer com propriedade que o ápice dessa doação, se encontra no Sacramento da Eucaristia.
Aparente simplicidade da Santa Ceia
Como se deu a instituição do mais excelente e sublime dos Sacramentos, o fim para o qual se ordenam todos os outros? 4
Na aparência, de um modo muito simples. Para os Apóstolos, tratava-se de uma ceia rotineira, celebrada todo ano pelos judeus segundo o multissecular rito indicado com detalhes por Deus a Moisés e Aarão, como algo a ser perpetuado de geração em geração (cf. Ex 12, 1-14). Ela lembrava aos judeus a Páscoa do Senhor, a morte dos primogênitos do Egito e a travessia do Mar Vermelho. Os discípulos estavam, portanto, com a ideia de uma simples rememoração religiosa quando de fato se realizaria no Cenáculo o que fora prefigurado na Antiga Lei: o sacrifício de animais cederia lugar ao holocausto do Cordeiro Divino que em breve seria imolado no altar da Cruz, para nossa salvação. As vítimas materiais simbolizavam o corpo de Cristo, e este seria ao mesmo tempo sacerdote e vítima no Novo Sacrifício, eterno e de valor infinito.
Segundo relatam os Evangelistas, depois de Jesus instituir a Eucaristia e dar a Comunhão aos Apóstolos, eles cantaram os salmos e saíram para o Monte das Oliveiras (cf. Mc 14, 26; Mt 26, 30). Constituíam esses salmos o poema de ação de graças intitulado Hallel — “Louvai a Javé” —, próprio da liturgia hebraica para a celebração da Páscoa5 e especialmente simbólico naquela circunstância: enquanto uns davam graças por terem comungado, o Messias rendia louvores ao Pai pela instituição da Eucaristia, que representava a concretização do anseio manifestado no início da Sagrada Ceia: “Desejei ardentemente comer convosco esta ceia pascal, antes de padecer” (Lc 22, 15).
Se soubessem com antecedência a grandeza do que seria instituído naquele dia — não só a Eucaristia, mas também o Sacerdócio —, é de se supor que os Apóstolos teriam preparado uma cerimônia à altura. Mas, naquele momento, quem tinha noção do que estava se passando?
II – Maria e a Eucaristia
Apenas Maria Santíssima tinha consciência da sublimidade da hora, pois é compreensível ter-Lhe Nosso Senhor revelado o que iria acontecer. Por quê?
Durante nove meses, operou-se em Maria a Transubstanciação
Tendo Maria recebido do Arcanjo Gabriel a Anunciação, o Espírito Santo A cobriu com sua sombra e iniciou-se o misterioso processo de gestação do Deus encarnado. Bem se pode dizer que, durante nove meses, a cada segundo n’Ela como que se celebrava uma Santa Missa.
Com efeito, no instante em que a alma de Jesus foi criada, fez Ele seu primeiro ato de adoração ao Pai, acompanhado de um perfeitíssimo oferecimento de Si mesmo como vítima; ou seja, realizou uma ação sacerdotal como Sumo Sacerdote “santo, inocente, sem mancha, separado dos pecadores e elevado acima dos céus” (Hb 7, 26). E para esse sublime sacrifício não havia na face da Terra altar mais digno do que o claustro virginal de Nossa Senhora. Por nove meses, viveu Ela no mais íntimo contato com Jesus, numa relação única na ordem do criado: tendo oferecido o seu corpo imaculado a Deus, Este tomava os elementos maternos e os transubstanciava; quer dizer, eles tornavam-se divinos a partir do momento em que passavam a integrar o corpo de Jesus.
E pensar que esse grandioso mistério não se teria realizado sem o consentimento da Virgem: “Faça-se em Mim segundo a vossa palavra”! (Lc 1, 38).
Assim, à medida que se formava o corpo do Menino em seu seio virginal, Maria tudo conferia em seu coração e ia explicitando, maravilhada, a fisionomia física e moral de seu Filho. Este, de seu lado, assumia cada vez mais o ser da Mãe e A ia divinizando. De fato, pela maternidade divina, “a Bem-aventurada Virgem Maria chegou aos confins da divindade”.6 Concebida em graça, Ela era verdadeiramente “o Paraíso terrestre do novo Adão”.7
O anseio de Maria por reviver esses momentos
Completados os dias e tendo Jesus nascido, que alegria não terá sentido a Virgem Santa ao segurar em seus braços aquele Menino gestado em seu seio, constatando como Ele correspondia ao que Ela, em sua inocência, imaginara! Não é possível fazer ideia da sublimidade da primeira troca de olhares entre Mãe e Filho. Quanta coisa foi dita sem articular palavra alguma! Olhar este talvez superado apenas por um outro: o último olhar de Jesus para sua Mãe, do alto da Cruz. Contudo, de outro lado, que saudades deveria Ela sentir do relacionamento, ao mesmo tempo inefável e misterioso, havido durante o tempo em que ia sendo formado em seu claustro o Corpo de Cristo!
O anseio santíssimo e equilibradíssimo d’Ela de receber novamente Jesus em seu interior com certeza foi crescendo8 a ponto de nesse desejo Ela comungar espiritualmente a todo instante. Portanto, seria arquitetônico que em certo momento Nosso Senhor tivesse revelado a instituição da Eucaristia9 a Quem é o modelo perfeito dos adoradores de Jesus-Hóstia. Porque, sem dúvida, os atos de amor eucarístico da Virgem Maria deram mais glória a Deus do que todas as honras prestadas ao Santíssimo Sacramento pelos anjos e homens ao longo da História, uma vez que somente Ela O compreendeu, amou e adorou adequadamente.
III – Grandeza do Mistério da Eucaristia
Com efeito, é a Eucaristia um dos mais profundos mistérios da nossa Fé: as aparências, os sabores e os aromas são de pão e de vinho; porém, tanto numa como noutra espécie, encontramos apenas a substância do Corpo, Sangue, Alma e Divindade Não é possível fazer ideia da sublimidade da primeira troca de de Cristo! Os sentidos nos olhares entre Mãe e Filho apresentam uma realidade, mas nossa Fé nos propõe “Virgem com o Menino Jesus” - Igreja de Notre Dame de Auteil (França) outra, na qual acreditamos.
Se, segundo ensina São Tomás, “o bem da graça é, para o indivíduo, melhor que o da natureza de todo o universo”10, o que dizer da menor fração visível de uma hóstia consagrada? Ali está o próprio Cristo. Não se trata de uma gota de graça, mas sim do próprio Autor da graça. Portanto, é algo cujo valor supera toda a criação, incluindo a ordem da graça. Juntemos as graças que os anjos e os homens receberam e ainda receberão, mais as existentes no mais alto grau em Nossa Senhora, e todas elas somadas não se comparam ao que há numa partícula consagrada: a recapitulação do Universo (cf. Ef 1, 10) numa aparência de pão! A grandeza contida neste Sacramento é inexprimível em linguagem humana. Tudo quanto há na criação foi promovido por Deus em ordem a Jesus Cristo, e o supremo ato de amor d’Ele pelos homens consistiu na instituição da Eucaristia para proporcionar-nos uma extraordinária forma de união pessoal com o Verbo Encarnado. Às palavras da Consagração, pronunciadas pelo sacerdote, o próprio Deus obedece, e se realiza o maior milagre da face da Terra. Por essa maravilha, bem podemos avaliar o quanto Ele nos ama de maneira incomensurável.
O Santíssimo Sacramento embeleza a alma
Qualquer um pode comprovar como as plantas expostas aos raios solares ostentam uma exuberância, uma beleza e uma vitalidade que elas não têm estando à sombra. Uma grande diferença, devida apenas ao esplendor do Sol.
Ora, se a natureza é embelezada dessa maneira pela luz solar, que admiráveis benefícios não deve proporcionar à alma o raio espiritual emanado diretamente do Deus Escondido? Muito mais benéfica é a Eucaristia para nossa alma do que o Sol para nosso organismo corporal. Tendo algumas faltas ou misérias — veniais evidentemente, porque com pecado mortal não se pode comungar —, está a pessoa obrigada a afastar-se de Jesus Eucarístico? Não. Pelo contrário, deve aproximar-se d’Ele ao máximo. Não fugir de Jesus, mas abrigar-se n’Ele, porque assim ela será purificadas dessas misérias, e sua alma sairá aperfeiçoada.11 Nossos olhos corporais não conseguem, infelizmente, contemplar tais mudanças. Santa Catarina de Sena desejando conhecer o esplendor de uma alma habitada pela graça divina, ouviu dos lábios do próprio Jesus esta declaração: “Minha filha, se Eu te mostrasse a beleza de uma alma em estado de graça, seria a última coisa que verias neste mundo, porque o esplendor de sua formosura te faria morrer”.12
De fato, a graça ao divinizar a alma, a torna tão bela e atraente que, se nos fosse possível vê-la, teríamos a tendência de adorá-la, imaginando que fosse Deus. Fortalecendo todas as suas potências, nutrindo-a com inspirações santas e com impulsos de amor, Jesus-Hóstia faz com que a alma pervadida pela graça se assemelhe cada vez mais a Ele.13 Por isso, quando vemos as maravilhas operadas pelos homens de Deus, podemos estar certos de que elas provêm muito mais da Eucaristia, da qual são devotos, do que de eventuais qualidades pessoais.
Além desses sublimes benefícios produzidos na alma pela Eucaristia, devemos considerar que, apesar de nossas limitações ou até imperfeições, Nosso Senhor tem saudades de nós, e quer nos aproximar d’Ele, pois encontra as suas “delícias em estar com os filhos dos homens” (Pr 8, 31). Com muita propriedade, encontra-se em algumas capelas do Santíssimo Sacramento a expressiva frase de Santa Marta à sua irmã: “Magister adest et vocat te” — “O Mestre está aqui e te chama” (Jo 11, 28). Quando entramos no recinto sagrado para fazer-Lhe uma visita, Jesus-Hóstia nos acolhe com alegria, como que dizendo: “Aqui está o meu filho! Há quanto tempo Eu não o via... Venha!”. De fato, nosso Redentor nos ama tanto que, por maiores que sejam nossas misérias, Ele Se alegra em nos ver.

Energia para enfrentar as dificuldades
Muitas são as conjunturas nas quais a pessoa se sente anêmica espiritualmente: ocasiões próximas de pecado que se apresentam, ou circunstâncias favorecedoras de um depauperamento espiritual, enfim, inúmeras situações que podem dessorar a fortaleza de alma. Onde então recuperar energias? Na Eucaristia. Disso nos dá exemplo — entre outros incontáveis santos — São Tomás de Aquino. Nas primeiras horas da manhã, ele celebrava sua Missa e em seguida assistia à de outro frade.14 Segundo consta, gostava inclusive de acolitar as Missas de seus irmãos de hábito. “Falando sobre os Sacramentos — disse recentemente o Papa Bento XVI —, o grande São Tomás reflete de modo particular sobre o Mistério da Eucaristia, pelo qual alimentou uma enorme devoção, a tal ponto que, segundo os antigos biógrafos, costumava aproximar a sua cabeça do Tabernáculo, como que para sentir palpitar o Coração divino e humano de Jesus”.15
Permanência dos efeitos da Eucaristia
Às vezes, cometemos o equívoco de pensar que, quando comungamos, Jesus Cristo mantém-Se presente em nós apenas nos cinco ou dez minutos de duração das espécies eucarísticas. Trata-se de uma realidade espiritual muito mais profunda. De fato, mesmo após cessar a presença real de Nosso Senhor “a graça permanece na alma que comunga, porque ela recebeu em estado de graça o Pão da Vida”, afirma Santa Catarina de Sena.16
Na Comunhão é Cristo que “nos diviniza e transforma em Si mesmo. “Consumidos os acidentes do Na Eucaristia alcança o cristão sua máxima ‘cristificação’” pão”, disse-lhe Nosso Senhor em uma revelação, “deixo em vós a marca de minha graça, como o selo aplicado sobre a cera quente. Tirando o selo, fica nela sua marca. Assim, resta na alma a virtude desse Sacramento, ou seja, mantém-se o calor da divina caridade, clemência do Espírito Santo. Continua em vós a luz da sabedoria de meu Filho Unigênito, que ilumina os olhos de vossa inteligência para que conheçais e vejais a doutrina de minha verdade e dessa mesma sabedoria”.17
Um alimento que assume quem o toma
Quando comemos, nosso organismo assimila os alimentos ingeridos, deles retirando as substâncias úteis para a vida. Mas, ensina-nos a Teologia, quando comungamos passa-se o contrário: é Cristo que “nos diviniza e transforma em Si mesmo. Na Eucaristia alcança o cristão sua máxima cristificação, em que consiste a santidade”.18 Não O consumimos, pois Ele cessa a sua presença sacramental em nós a partir do momento em que as Sagradas Espécies deixarem de subsistir. Estando em nós, Ele nos enche de vida sobrenatural, santifica nossa alma e beneficia em consequência nosso corpo.
Por essa razão, o próprio Jesus, como nos narra o Evangelho desta Solenidade, ressalta a substancial diferença entre o maná recebido pelos judeus no deserto e o alimento trazido por Ele na Eucaristia: “Este é o pão que desceu do Céu. Não é como aquele que os vossos pais comeram. Eles morreram. Aquele que come este pão viverá para sempre” (Jo 6, 58).
Penhor da ressurreição para a vida eterna
“Pela Santa Comunhão renova-se de certo modo o augusto mistério da Encarnação”19, afirma com autoridade São Pedro Julião Eymard. O padre Royo Marín é mais afirmativo: na alma de quem acaba de comungar, diz ele, “o Pai engendra seu Filho Unigênito, e de ambos procede essa corrente de amor, verdadeira torrente de chamas, que é o Espírito Santo”.20 Em virtude da união eucarística, a alma do fiel se torna “mais sagrada que a custódia e o cálice, mais até que as próprias espécies sacramentais, que certamente contêm a Cristo, mas sem tocá-Lo e sem receber d’Ele qualquer influência santificadora”.21 E por isso, quem comunga recebe graças para bem viver de acordo com os Mandamentos e depois ter o prêmio da ressurreição com o corpo glorioso: “Aquele que come este pão, viverá para sempre” (Jo 21, 58).
IV – Saibamos retribuir sem medidas
Infelizmente, muitas vezes não avaliamos com profundidade todos os benefícios recebidos nesse sacral convívio com a Eucaristia na qual nosso Divino Redentor está realmente presente como quando operou a transformação da água em vinho nas bodas de Caná, ou quando ressuscitou Lázaro, ou ainda quando expulsou os vendilhões do Templo. O que não daríamos para presenciar um único milagre de Jesus ou ouvir algum de seus sermões? Ou mesmo receber d’Ele um só olhar? Quando chegarmos ao Céu, se Deus nos conceder essa suprema graça, compreenderemos que um instante de adoração eucarística compensa mil anos de sacrifícios na Terra.
E, no entanto, hoje temos Jesus-Hóstia nos tabernáculos sempre à nossa disposição; a qualquer momento Ele lá está nos aguardando com insignes graças, desejoso de receber nossa pobre visita. Se na Encarnação Deus quis Se unir à mais pura das criaturas, na Santa Comunhão Ele celebra suas bodas com cada pessoa em particular, numa união sem paralelo. “A alma une-se de tal forma a Jesus Cristo que perde, por assim dizer, seu próprio ser e deixa viver tão-somente Jesus nela”.22 Perde-se em Nosso Senhor como uma gota d’água no oceano. E a correspondência de nosso amor tornará mais perfeita e profunda essa união.
Peçamos a Jesus Sacramentado, nesta festa da Eucaristia, um amor íntegro e uma entrega total a Ele, única restituição digna por tudo quanto d’Ele recebemos. E transbordemos de alegria e de entusiasmo por sermos tão amados individualmente por um Deus que já nesta vida é a nossa “recompensa demasiadamente grande” (Gn 15, 1).
1“O mundo não é o produto de uma necessidade qualquer, de um destino cego ou do acaso. Cremos que o mundo procede da vontade livre de Deus, que quis fazer as criaturas participarem de seu ser, de sua sabedoria e de sua bondade” (CIC 295).
2CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. A presença de Cristo entre os homens. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano VI. N.63 (Jun., 2003); p.23.
3Idem, ibidem.
4“Falando em absoluto, o Sacramento da Eucaristia é o principal Sacramento. Três argumentos o mostram. 1º - Porque nele está contido substancialmente o próprio Cristo, enquanto os outros Sacramentos contêm apenas uma força instrumental que participa de Cristo. Ora, em todos os âmbitos, o que é por essência é mais digno do que aquilo que é por participação. 2º - Pela ordem recíproca dos Sacramentos, pois todos os demais Sacramentos parecem orientar-se a este como a seu fim. [...] 3º - Pelo rito dos Sacramentos, pois quase todos os Sacramentos atingem seu termo na Eucaristia” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, III, q.65, a.3, resp.).
5“De acordo com a prescrição rabínica, devia-se rezar ou cantar durante a ceia pascal os salmos 112 a 117, denominados ‘Hallel’, ou ‘louvor’. Os dois primeiros, antes de sentar-se à mesa; os outros, no final da refeição, quando se bebia a quarta taça, com a respectiva bênção, que por isso se chamava ‘bênção do cântico’” (GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.IV, p.274).
6ROYO MARÍN, OP, Antonio. La Virgen María. 2.ed. Madrid: BAC, 1997, p.102.
7SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT, Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, n.6.
8Cf. ALASTRUEY, Gregorio. Tratado de la Virgen Santísima. Madrid: BAC, 1945, p.682.
9Cf. ALASTRUEY, op. cit., p.676-677.
10Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I-II q.113, a.9, ad. 2.
11Cf. ALASTRUEY, op. cit., p.237-238.
12SANTA CATARINA DE SENA, apud ROYO MARÍN, OP, Antonio. Somos hijos de Dios. Madrid: BAC, 1977, p.26.
13Cf. SÃO PEDRO JULIÃO EYMARD. A divina Eucaristia. São Paulo: Loyola, 2002, v.II, p.30.
14Cf. GRABMANN, Martín. Santo Tomás de Aquino. 2.ed. Barcelona: Labor, 1945, p.29.
15BENTO XVI. Audiência Geral, 23/6/2010.
16SANTA CATARINA DE SENA. El Diálogo. Madrid: BAC, 1955, p.398.
17Idem, ibidem.
18ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la Perfección Cristiana. 5.ed. Madrid: BAC, 1968, p.453.
19SÃO PEDRO JULIÃO EYMARD, op.cit., p.26.
20ROYO MARÍN, Teología de la Perfección Cristiana, op. cit., p.454.
21Idem, ibidem.
22SÃO PEDRO JULIÃO EYMARD, op. cit., p.126.