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domingo, 21 de maio de 2017

Evangelho Solenidade da Ascensão do Senhor – Ano A

Comentários ao Evangelho Solenidade da Ascensão do Senhor – Ano A
Naquele tempo, 16 os Onze discípulos foram para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado. 17 Quando viram Jesus, prostraram-se diante d’Ele. Ainda assim alguns duvidaram. 18 Então Jesus aproximou-Se e falou: “Toda a autoridade Me foi dada no Céu e sobre a terra. 19 Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, 20 e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei! Eis que estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 16-20).
I – A hora da partida de Jesus Cristo
   A Igreja celebra na Quinta-feira da 6ª Semana do Tempo Pascal a Solenidade da Ascensão do Senhor, transferida no Brasil para o 7º Domingo da Páscoa, por razões pastorais. Houve épocas em que esta festividade era realizada com grande brilho. Assim como se comemora à meia-noite do dia 24 de dezembro o nascimento do Menino Jesus e às três horas da tarde da Sexta-Feira Santa a sua Morte, a Ascensão o era ao meio-dia. Na Idade Média costumava-se realizar uma procissão para representar o trajeto feito por Nosso Senhor, acompanhado pelos Apóstolos e discípulos, de Jerusalém ao Monte das Oliveiras, de onde Ele ascendeu para junto do Pai (cf. At 1, 12). Durante a Missa, o diácono apagava o Círio Pascal logo após o cântico do Evangelho, simbolizando o último episódio da existência visível do Redentor na terra.
   Hoje, ao contemplarmos sua subida aos Céus, tenhamos presente que Jesus não nos abandonou, mas, pelo contrário, continua conosco, conforme a promessa feita no Evangelho: “Eis que estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo”. E nós, enquanto filhos, também desejamos permanecer com Ele, uma vez que veio a este mundo trazer-nos a participação na sua natureza divina.
II – Quando será restaurado o Reino?

   Ao longo de seus escritos, os Evangelistas procuram expor os acontecimentos centrais da vida terrena de Nosso Senhor, na maior parte da qual Ele assumiu um corpo padecente como o nosso. No entanto, com exceção de São Lucas, quase nada dizem a respeito da Ascensão (cf. Mc 16, 19), evento de suma importância. Apenas no terceiro Evangelho encontramos alguns versículos dedicados a este mistério (cf. Lc 24, 50-51), além de um relato mais pormenorizado, no início dos Atos dos Apóstolos, em que, dando sequência a seu primeiro livro, o mesmo autor descreve a ação mística de Jesus após sua partida para os Céus, ou seja, o desenvolvimento e expansão da Igreja em seu nascedouro.
   Por tal razão, e por ter sido o término do Evangelho de São Mateus objeto de outros comentários,1 será ele analisado à luz da narrativa da Ascensão feita por São Lucas – primeira leitura desta Solenidade (At 1, 1-11) –, já que o texto evangélico não se refere propriamente ao fato histórico da despedida de Nosso Senhor, mas sim a uma de suas aparições ocorrida durante os quarenta dias em que, ressuscitado, conviveu com os Apóstolos e lhes transmitiu seus últimos ensinamentos.
Errônea concepção a respeito do Messias
Naquele tempo, 16 os Onze discípulos foram para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado. 17 Quando viram Jesus, prostraram-se diante d’Ele. Ainda assim alguns duvidaram.
   Várias destas manifestações de Nosso Senhor nesse período deram-se na Galileia. Ao escolher uma região afastada de Jerusalém tornava-se patente que o verdadeiro culto a Deus não se prendia mais ao Templo, mas à sua Pessoa Divina. O primeiro versículo do Evangelho recorda também sua predileção pelos lugares elevados, tantas vezes demonstrada durante sua vida pública. Alguns acreditam que este episódio tenha ocorrido no Tabor, outros em um dos montes situados nas proximidades do Lago de Genesaré.2 O certo é que o local foi determinado pelo próprio Jesus por razões sapienciais, como comenta São Rábano Mauro: “O Senhor apareceu-lhes num monte para dar a entender que o Corpo que havia tomado da terra ao nascer – como sucede a todos os homens – já estava elevado acima de todas as coisas terrenas quando ressuscitou, e ensinava aos fiéis que, se desejassem ver como Ele a magnificência da ressurreição, deviam esforçar-se por passar das mais baixas paixões às mais elevadas aspirações”.3
   Ao reconhecerem Jesus, os Onze prostraram-se diante d’Ele para adorá-Lo. Bem podemos cogitar que nesses encontros durante sua permanência visível entre nós antes de subir aos Céus, os Apóstolos sentiam no fundo da alma que algo grandioso estava para acontecer. Entretanto, apesar de O haverem acompanhado em sua pregação, de terem passado pelo terrível trauma de vê-Lo preso, flagelado, coroado de espinhos, morto na Cruz e sepultado, tendo inclusive constatado o milagre da Ressurreição e presenciado suas aparições já em corpo glorioso ao longo de quarenta dias, não souberam interpretar bem aquela promessa imponderável feita pela graça em seu interior, porque lhes faltava a descida do Espírito Santo. Deduziram eles, equivocadamente, ter chegado a hora do triunfo social de Cristo.
   Conforme crença comum entre os judeus, aguardavam eles a restauração da soberania política de Israel, levada a uma nova plenitude em que, finalmente, o povo eleito estivesse acima de todas as nações, sem precisar pagar impostos aos romanos. E imaginavam Jesus como o rei ideal segundo essa perspectiva. Em consequência, a divulgação do Evangelho, como Ele havia recomendado que fizessem, seria feita ao mesmo tempo com a palavra nos lábios, a espada na mão direita e uma bolsa na esquerda.
   Embora eles, enquanto membros do povo judeu, estivessem já por vários anos sofrendo a perseguição e o ostracismo, não entendiam o motivo pelo qual Deus permitia esses infortúnios, o que na verdade visava instruí-los a não depositar a esperança no poder, na política ou no dinheiro, e sim no sobrenatural, na Religião verdadeira, na Redenção operada por Cristo e na Revelação feita por Ele. Surpreende-nos comprovar que essa errônea concepção tenha perdurado por tanto tempo entre os Apóstolos, mas a realidade é que nas aparições de Nosso Senhor ressuscitado, e até no momento da Ascensão, eles ainda pensavam numa glória humana, a ponto de chegarem a indagar: “Senhor, é agora que vais restaurar o reino em Israel?” (At 1, 6). A explicação mais corrente dos exegetas a essa passagem centra-se na mentalidade deformada dos que a formularam, e poucos se detêm na significativa resposta do Divino Mestre.
Cristo reina por meio da Igreja
   Com efeito, é de se notar como, nessa ocasião, Ele não contradiz os discípulos, não refuta de forma violenta seu anseio de um poderio ostensivo na face da terra. Ao invés disso, lhes diz: “Não vos cabe saber os tempos e os momentos que o Pai determinou com a sua própria autoridade” (At 1, 7). É uma clara alusão a que algo na linha do que desejavam de fato se realizaria, mas no tempo estabelecido pela vontade divina. Momentos, portanto, em que a onipotência de Deus tem de se manifestar com todo o seu vigor na obra d’Ele chamada Santa Igreja Católica Apostólica Romana, verificando-se os efeitos do preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, de valor infinito, derramado no Calvário. Haverá então um só rebanho, sob a égide de um só pastor, e a autoridade de Cristo se exercerá de modo refulgente, inclusive com reflexos na vida social.
   Essa mesma perspectiva, descortinada pelo Senhor no dia de sua Ascensão, nós a encontramos nos subsequentes versículos deste Evangelho:
18 Então Jesus aproximou-Se e falou: “Toda a autoridade Me foi dada no Céu e sobre a terra”.
   Tal autoridade “no Céu e sobre a terra” Nosso Senhor a possui desde todos os séculos, enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Filho Unigênito de Deus. Porém, enquanto Homem Ele a recebeu por direito de conquista através do sacrifício de sua Paixão e Morte, como observa São Jerônimo: “Foi dado o poder Àquele que pouco antes havia sido crucificado, sepultado num túmulo, que jazia morto e depois ressuscitou. Foi-Lhe dado o poder no Céu e na terra para que o que antes reinava no Céu agora reine em toda a terra, por meio da fé dos que creem”.4
   Muitas vezes, contudo, a Igreja enfrenta terríveis tribulações nas quais seus inimigos empreendem todos os esforços para arrebatar a sua autoridade. A análise da História nos leva a comprovar que Deus permite, em certas circunstâncias, até mesmo um triunfo aparente do mal. E quando este está prestes a atingir o seu auge e a ponto de cravar o estandarte da vitória absoluta, Deus reverte o curso dos acontecimentos. Assim, dado que nunca houve uma crise tão grave como a de nossos dias, em que o progresso do mal se encontra num estágio avançado e vislumbra seu êxito total, é necessário que, em determinado momento, este mesmo mal seja acuado, aterrorizado, humilhado e jugulado, e a Igreja brilhe com novo fulgor. Esta vitória, como acima dissemos, não se limita à santidade no campo das almas, que ela sempre suscitou desde que foi fundada, mas abarca inclusive a sacralização da ordem temporal.
   Ensina São Paulo que a própria criação, com a “esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção, […] geme e sofre como que dores de parto” (Rm 8, 21-22), pois, se foi “sujeita à vaidade” (Rm 8, 20), também deve ser beneficiada pela Redenção. Da mesma maneira, pode-se afirmar que a sociedade civil, a qual está na base da espiritual e lhe oferece elementos, foi fortemente atingida pelo pecado e precisa receber neste mundo – pois ela não passará para a eternidade – a sua glória, pelos méritos do Salvador. A assembleia celeste, todavia, formada pelos Santos, é perpétua e seu prêmio consiste no convívio com Deus, na visão beatífica.
   A nós, como outrora aos discípulos, não nos “cabe saber os tempos e os momentos”, mas temos certeza de que essa glorificação virá, pois Nosso Senhor possui pleno domínio sobre todas as coisas e, por mais que os homens queiram impedir o cumprimento de seus desígnios, Ele os realizará quando for de sua vontade.
A necessidade de evangelizar
19 “Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, 20a e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!”
   Abandonando o futuro nas mãos de Deus, o que deveriam fazer os Apóstolos? Pôr em prática a recomendação de Jesus neste versículo, sem pensar em qualquer restauração segundo seus critérios deturpados, preparando-se para serem testemunhas da Boa-nova em todo o orbe, sem contar com qualquer recurso militar, político ou financeiro, e sim com a força do Espírito Santo, como Ele lhes garantiu antes de deixá-los: “descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra” (At 1, 8). Com este irresistível poder eles começariam a divulgar os ensinamentos do Divino Mestre e o Reino de Deus se implantaria de forma impalpável, muito mais através da fé do que pelos meios concretos, tal como o grão de mostarda que, ao ser semeado, vai se desenvolvendo quase imperceptivelmente até alcançar vigorosa expansão (cf. Mt 13, 31-32).
Confusão entre a primeira e a segunda vinda do Messias
20b “Eis que estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo”.
   Jesus em breve partiria para junto do Pai. Antes, porém, faz a promessa de permanecer com os homens até a consumação dos tempos. São João Crisóstomo ressalta que Ele aqui Se refere a todos os membros da Igreja, pois “não disse que estaria somente com eles, mas também com todos os que creriam depois deles. […] O Senhor fala com seus fiéis como a um só Corpo”.5 Além disso, comenta ainda o Santo que Ele chama a atenção dos discípulos para “o fim do mundo, a fim de atraí-los mais e para que não olhem apenas para as dificuldades presentes, senão também para os bens vindouros, que não têm termo”.6
   Os Apóstolos, evidentemente, não podiam acompanhá-Lo na Ascensão, pois, quem tem forças para subir ao Céu, “senão aquele que desceu do Céu” (Jo 3, 13)? Entretanto, quando Ele desapareceu envolto em uma nuvem, aproximaram-se dois Anjos vestidos de branco e perguntaram: “Homens da Galileia, por que ficais aqui, parados, olhando para o Céu? Esse Jesus que vos foi levado para o Céu virá do mesmo modo como O vistes partir para o Céu” (At 1, 11).
   As palavras dos mensageiros celestes são muito expressivas, pois vinham confirmar as promessas de Jesus, abrindo a compreensão dos Onze para começarem a entender que a glória e o aparato desejado para o Messias, e para a instauração do Reino de Deus na terra, não correspondiam aos planos divinos naquela circunstância, e estavam reservados para o seu regresso. Na realidade, eles confundiam a segunda vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo com a primeira, julgando que esta deveria ser pomposa, tonitruante, cheia de magnificência, brilho e esplendor. Não obstante, Ele nasce numa gruta, abraça a pobreza a ponto de não ter onde repousar a cabeça (cf. Mt 8, 20), e até os milagres que opera têm um caráter muito sereno, sem grandes ribombos, pois Ele não queria chamar demasiada atenção e até proibia, às vezes, que se fizesse propaganda deles (cf. Mt 12, 15-16; Mc 1, 43-44). Só na segunda vinda – em que “virá do mesmo modo como O vistes partir para o Céu” – Se manifestará com imponência e majestade.
   Com efeito, então o Rei dos reis descerá seguido pelo cortejo dos exércitos celestes, montados em cavalos brancos e vestidos de linho de brancura resplandecente (cf. Ap 19, 14). O Doutor Angélico defende a tese de que, antes de chegar à terra, a meia altura, o Salvador será recebido por uma plêiade de cojuízes que irão a seu encontro, como costumam fazer as autoridades de um lugar quando acolhem outra de maior dignidade. São eles varões perfeitos, escolhidos para julgar a humanidade junto com Ele, pois “neles estão contidos os decretos da divina justiça”.7 Só depois, em meio a uma apoteose, será dado início ao Juízo Final, que separará o trigo do joio (cf. Mt 13, 30), os da direita dos da esquerda (cf. Mt 25, 33), e se concluirá com a subida dos bons para o Céu, na companhia do Filho de Deus, enquanto os maus serão precipitados nas trevas.
III – A Ascensão do Senhor, penhor da nossa
   Aquele que hoje Se eleva aos Céus é o mesmo que foi humilhado, açoitado, coroado de espinhos, crucificado entre dois ladrões e depositado num sepulcro. Seu Corpo estava chagado da cabeça aos pés, tal como a respeito d’Ele profetizara o salmista: “Sou um verme, não sou homem, […] poderia contar todos os meus ossos” (Sl 21, 7.18); mas, antes de sua carne começar a sofrer a corrupção (cf. Sl 15, 10), ressuscitou-Se a Si próprio com seu poder divino,8 passou quarenta dias na terra e voltou para o Pai.
   São Tomás se pergunta que força O teria feito subir, e explica que, sendo Ele a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, nesse instante exerceu sua onipotência, pelo que a causa primeira foi sua virtude divina. Baseando-se também em Santo Agostinho, acrescenta que, no momento da Ressurreição, a glória da Alma de Cristo redundou na glorificação do Corpo, com seus atributos próprios, dentre os quais a agilidade, que confere a capacidade de se movimentar segundo o pensamento e o desejo, de maneira que onde está o espírito, lá esteja também o corpo. Ora, não convinha que Ele permanecesse na terra, uma vez que ela é um local de decomposição, e era preciso que seu Corpo imortal estivesse no lugar apropriado, isto é, o Céu Empíreo. Assim, conclui o Santo Doutor, a segunda causa de sua Ascensão, foi “pelo poder da Alma glorificada que movia o Corpo como queria”.9
Uma promessa feita a toda a humanidade
   Nosso Senhor Jesus Cristo alçou-Se por seu próprio poder, e teve a delicadeza de deslocar-Se lentamente, ascendendo não à velocidade do pensamento, mas conforme a admiração dos que presenciavam o milagre. Foi-Se distanciando com calma, sorrindo e abençoando, até Se tornar um ponto cada vez menor e desaparecer. À vista da exaltação do Mestre, todos os circunstantes transbordaram de alegria e “voltaram para Jerusalém com grande júbilo” (Lc 24, 52).
   Também para nós a Ascensão é motivo de gozo, de esperança e de fé. Por quê? Usemos de um exemplo para facilitar a compreensão deste mistério e sua implicação na espiritualidade dos fiéis. Seria impossível, e até monstruoso, imaginar que no dia de Páscoa só a Cabeça do Redentor voltasse à vida, enquanto seu Corpo sagrado jazesse chagado no túmulo. Ressuscitando a Cabeça, também todo o Corpo tinha de o fazer! Pois bem, a Igreja é o Corpo Místico de Cristo; e Ele, ressuscitando como Cabeça da Igreja, dá aos batizados o penhor da ressurreição, pois “cada um, de sua parte, é um dos seus membros” (I Cor 12, 27). O mesmo se pode dizer da Ascensão: subindo aos Céus em Corpo e Alma, o Redentor concede a garantia de nos conduzir à eternidade da mesma forma, pois “Ele é nossa Cabeça, mister se faz que os membros vão para onde ela se dirigiu”.10 A este respeito comenta São João Crisóstomo: “Observe-se que o Senhor nos faz ver suas promessas. Havia prometido ressuscitar os corpos; ressuscitou-Se a Si mesmo dos mortos e confirmou seus discípulos nesta fé, durante quarenta dias. Prometeu que seremos arrebatados ao Céu, e também o provou por meio das obras”.11
   Quando o Filho de Deus assumiu nossa carne, quis Ele viver entre nós para dar o exemplo da plenitude e da perfeição em todas as virtudes, atos e gestos que devemos praticar, inclusive na nossa futura partida para o Céu, como esperamos. A Ascensão do Senhor é, pois, para nós, um ponto de imitação. Como será, então, a nossa?
De Deus viemos, a Ele devemos retornar
   No Evangelho de São João encontramos as palavras do Divino Mestre que sintetizam a trajetória de sua vida terrena, e devem também ser o resumo da nossa: “Saí do Pai e vim ao mundo. Agora deixo o mundo e volto para junto do Pai” (Jo 16, 28). Elas podem se aplicar com toda razão aos homens, pois nenhum de nós criou a própria alma. Apenas o corpo foi formado pelo concurso dos pais – e mesmo estes não o engendrariam sem a força de Deus –, mas a alma provém d’Ele, que a cria no instante da concepção para que anime o corpo. Se fomos constituídos por Deus, é preciso que nosso desenvolvimento se faça com vistas a este retorno a Ele, como se deu com Jesus. Eis a extraordinária dignidade de nossa origem e de nossa finalidade: Deus!
   No entanto, para atingirmos este fim é indispensável fazer como Nosso Senhor, que viveu com a atenção voltada para o Pai, conforme testemunhou em seu discurso de despedida: “Eu Te glorifiquei na terra” (Jo 17, 4a). Nisto consiste a missão, o dever moral de cada homem. E não pensemos que tal meta se contrapõe às nossas obrigações no estado familiar ou em qualquer outro, pois se as cumprimos por amor a Deus, em função d’Ele e para Ele, realizamos o nosso chamado e poderemos dizer: “Terminei a obra que Me deste para fazer” (Jo 17, 4b). Com a Encarnação, Jesus revelou à humanidade o Deus Uno e Trino, Pai, Filho – que é Ele – e Espírito Santo, e mostrou que a única Religião verdadeira, o único caminho que nos fortalece e nos dá paz é este que Ele trouxe, com o perdão dos pecados, a instituição dos Sacramentos e a felicidade do estado de graça. Por isso pôde afirmar: “Manifestei o teu nome aos homens” (Jo 17, 6). Quanto a nós, devemos continuar a sua obra e, para isso, contar com a força do Espírito Santo que nos é prometida. Se estivermos compenetrados de que somos membros de seu Corpo Místico, chamados a participar da herança de sua glória, e seguirmos a via por Ele aberta, nossos corpos ressuscitarão gloriosos no último dia.
Glorificação da natureza humana
   A Ascensão de Cristo é o preâmbulo do que nos aguarda, como Ele anunciou: “Vou preparar-vos um lugar” (Jo 14, 2). Ao subir, abre para nós as portas do Céu e, ao cântico dos Anjos, Se estabelece em seu trono ao lado do Pai, representando toda a humanidade, como belamente entoamos nos versos do hino de Laudes desta Solenidade: “Demos graças a tal defensor / que nos salva, que vida nos deu / e consigo no Céu faz sentar-se / nosso corpo no trono de Deus”.12 De fato, no momento em que a humanidade santíssima de Jesus Se assenta no “trono da Majestade divina nos Céus” (Hb 8, 1) e recebe a glória devida, todo o gênero humano é também elevado.
   Sabemos, todavia, que só no Juízo Final teremos essa glória, pois antes disso todos morreremos e o corpo não será poupado da decomposição, servindo de alimento aos vermes até se desfazer. Enquanto não o recuperarmos a alma estará, sob certo aspecto, em estado de violência, como explica o Pe. Royo Marín: “Se é contrário à natureza qualquer mutilação do corpo humano, […] é evidente que muito mais contrário à natureza humana é que o corpo inteiro se destaque e se separe de sua alma”.13 Contudo, o período que permeia entre o instante em que fechamos os olhos para esta vida e o da ressurreição no último dia é ínfimo se comparado à eternidade. No fim do mundo comprovaremos o extraordinário poder de Deus pois, assim como criou nossa alma do nada, Ele reconstituirá os corpos a partir do que deles ainda restar; e, se tivermos morrido em graça, os restituirá em estado glorioso, para subirmos ao Céu tal como Nosso Senhor Jesus Cristo em sua Ascensão, comemorada liturgicamente nesta Solenidade.
Ele intercede por nós junto ao Pai
   À vista disso, a Oração do Dia adquire especial significado ao recordar que a Ascensão do Senhor “já é a nossa vitória”.14 E prossegue: “Fazei-nos exultar de alegria e fervorosa ação de graças, pois, membros de seu Corpo, somos chamados na esperança a participar da sua glória”.15 Ele está sentado no trono de Deus, à direita do Pai, como Intercessor, Mediador e Sacerdote, apresentando-Lhe sua humanidade! Sem dúvida, basta-nos isto para obtermos tudo o que necessitamos. E Ele não só oferece sua humanidade, como o faz depois de ter passado por todas as vicissitudes de um corpo padecente, pela Paixão e pela Morte. O Pe. Monsabré, célebre pregador dominicano, tece algumas considerações sobre este tema: “Lá, Vós concluís a obra de nossa salvação. Lá, Vós fazeis um apelo à nossa fé, à nossa esperança, ao nosso amor, às nossas adorações; lá, precursor diligente e devotado, nos preparais um lugar, mostrando-nos a via que seguistes e as gerações bem-aventuradas que haveis livrado do poder de satanás. Lá, Pontífice misericordioso, Vós mostrais as vossas chagas e aplicais, em nosso favor, os sofrimentos e os méritos de vossa Paixão e de vossa Morte; de lá, derramais sobre nós todos os vossos dons. De lá, enfim, Vós vireis um dia, lei subsistente e viva, Sabedoria Encarnada, Senhor de toda criatura, exemplar de toda vida, plenitude de toda graça, de lá vireis, revestido de grande poder e de grande majestade, para julgar os vivos e os mortos”.16
   Deste modo, temos ao lado do Pai alguém que participa de nossa natureza, de nossa carne e de nossos ossos a advogar por nós, acompanhado por Maria Santíssima, que sempre vela com incansável maternalidade pelos homens.
   Peçamos a Eles a graça de não serem tisnadas nossas almas pelas ilusões que levaram os Apóstolos a procurarem uma felicidade meramente humana. Esteja nossa atenção sempre voltada para as coisas do alto, buscando restituir a Deus tudo quanto d’Ele recebemos ao longo da vida. E assim como estamos neste mundo para imitar Nosso Senhor, que Se encarnou para ser o Modelo Supremo, assim também devemos nós ser exemplo para os outros. Eis a verdadeira perspectiva neste estado de prova: manter sempre a esperança de que, em determinado momento, estaremos em corpo e alma nos Céus, num eterno e sublime convívio com e sublime convívio com Deus!
1 Cf. CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. De rejeitado a onipotente. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.18 (Jun., 2003); p.6-11; Comentário ao Evangelho da Solenidade da Santíssima Trindade – Ano B, no Volume III da coleção O inédito sobre os Evangelhos.
2 Cf. TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.605.
3 SÃO RÁBANO MAURO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Matthæum, c.XXVIII, v.16-20.
4 SÃO JERÔNIMO. Comentario a Mateo. L.IV (22,41-28,20), c.28, n.64. In: Obras Completas. Comentario a Mateo y otros escritos. Madrid: BAC, 2002, v.II, p.419.
5 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía XC, n.2. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (46-90). 2.ed. Madrid: BAC, 2007, v.II, p.729.
6 Idem, ibidem.
7 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Suppl., q.89, a.1.
8 Cf. Idem, III, q.53, a.4.
9 Idem, q.57, a.3.
10 Idem, a.6.
11 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.XXIV, v.50-53.
12 SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR. Hino de Laudes. In: COMISSÃO EPISCOPAL DE TEXTOS LITÚRGICOS. Liturgia das Horas. Petrópolis: Ave-Maria; Paulinas; Paulus; Vozes, 2000, v.II, p.830.
13 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la salvación. 4.ed. Madrid: BAC, 1997, p.174.
14 SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR. Oração do Dia. In: MISSAL ROMANO. Trad. portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.313.
15 Idem, ibidem.

16 MONSABRÉ, OP, Jacques-Marie-Louis. Le Triomphateur. In: Exposition du Dogme Catholique. Vie de Jésus-Christ. Carême 1880. 9.ed. Paris: P. Lethielleux, 1903, v.VIII, p.327-329.

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